domingo, 26 de abril de 2009

Nun`Álvares por Carlos Eduardo de Soveral

NUN`ÁLVARES

De pé, sem um abandono, tenso, o tronco curto, pernas e braços sobretudo, pescoço destacado a dominar o gorjal, o rosto aberto e desenvolto sob fronte ampla, limpa, bem erguida, nariz e sobrolhos longamente rectilíneos, e em tudo uma irradiação de inexcedível juventude ou daquele império que só desta se desprende — é o que do Condestável nos diz a xilogravura da sua Crónica, «talvez cópia do retrato em corpo inteiro, pintura do século XVI, que ornava o Capítulo dos Bispos no antigo Convento do Carmo». É o retrato que primeiro relanceámos, logo em meninos, e para sempre na retina nos ficou — aquele que ao longo da vida fomos, mais e mais, pejando de sentido —. A acção de Nuno que nele esplende lançava-nos a fantasia para os infinitos meandros da invenção. Por tal retrato, eleito dos florilégios e selectas escolares, rumorejava em nossa alma um entrechocar de armas e perfis. A confusa, e amada, representação da cavalaria mediévica. Com os olhos interiores víamos Nuno a lutar sem descanso por seu Rei e sua Terra — a fazer, sim, decerto, o que ele fez —. Não tínhamos dúvida: o Condestável fora e fizera assim. É que a impressão nos vinha da mais célebre das suas figurações, aquela em que todos acreditamos.
E compreende-se. O inteiro retrato é uma flor de pura força. Os ombros palpitantes, a despeito do ferro que os reveste, os ombros avançados em deliberada contracção muscular (com prioridade do destro, afeito a uma esgrima incessante), as mãos abraçando com vigor visível, quase ciosamente, o martelo d`armas ou de guerra, erguido em jeito de cruz que no peito se recorta e incrustra: toda a figura cresce como que em levitação. Era isto, sim, o que mais nos intrigava: rapazes do liceu, não chegávamos a perceber claramente o impulso que define a traça do Condestável. Impressionava-nos a posição dos pés, em pontas, que não conseguíamos explicar pela inclinação do pavimento representado no debuxo, desde que parecia não ser pisado. Tudo nos conduzia, afinal, à realidade: a figura do Condestável salta, é um conjunto atirado para o alto: o aprumo perfeito do perfeito homem. Uma figura que está nos bicos dos pés, ou acima da terra, e que inteira inculca, desde as pernas admiravelmente lançadas e soltas, pernas de homem colgado dum propósito providencial, o dinamismo irradiante.
E ao dinamismo e à volição junta-se a filha de ambos: a alegria, a alegria sem medida. Porque, inda quando severa e pujantemente afirmativo o documento iconográfico, é seu tom maior a exultação. Uma exultação, auréola do caso humano, que se funde perfeitamente com as vivências do guerreiro. E chegamos a que a imagem tão vista, e tão deveras pouco lida, nos dá o representante-paradigma duma geração. Porque Nun`Álvares sintetiza a euforia dos rapazes do seu tempo. Acodindo-nos que o retrato é a ilustração excelente dessa crença comum de que com o Interregno de 83-85 surge o princípio doutra idade, como escreve Fernão Lopes; a crença que impele uma primeira vaga geracional e que, avigorando o trono do Mestre, há-de ser a mais robusta das linhas de força que estruturarão a história avizense. Na euforia, nas máximas jucundias dos começos, estão a firmeza, a segurança, a certeza inabalável que hão-de caracterizar as empresas do Atlântico, do Índico, do mundo todo. Nesta figuração do Condestável vemos, pois, a percussão inicial com todas as consequências:
— Que magnífico rapaz! Que magnífico protótipo geracional!
Magnífico, sim, nas proporções bem portuguesas — na beleza física do guerreiro. Membrudo e pernalta, tronco curto, pescoço destacado, Nun`Álvares define uma estética: aquela que encontramos nos painéis de Nuno Gonçalves, e que se mostra, desnuda no S. Sebastião do mesmo mestre. É a estética cujos ingénuos formuladores não hesitam em referir mercê dos mais directos adjectivos. O virilíssimo autor anónimo da Crónica do Condestabre diz do irmão deste, Fernão Pereira, morto no infrutífero lance de Vila Viçosa, «que era um dos fremosos corpos de homens do reino». (Ocorre uma passagem do Parsifal de Wolfram de Eschenbach, e bem assim o que Rui de Pina escreveu do Condestável D. Pedro na Crónica do Senhor Rei D. Afonso V, Cap. LXXXV, «a mais fremosa nem melhor proporcionada criatura que se podia ver do seu tempo», sem esquecer as múltiplas alusões à beleza varonil — «o mais formoso de melhor donaire», «Dalides catava todavia Galaaz, ca o preçava de formosura sobre todolos cavaleiros que nunca vira», «filho mui formoso, filho mui bem talhado» — que abundam n`A Demanda do Graal.) Não admira: a milícia permanente, e nela a ininterrupta esgrima das armas, determinava a melhor estilização anatómica. Por isso, o que o cronista diz de Fernão Pereira, e o que se vê no retrato de Nun`Álvares, mostrará João de Barros em D. Lourenço de Almeida, o herói de Chaul. Corpos esplêndidos, proporções admiráveis — e nossas. No Índico, devemos ter impressionado como os gregos de Alexandre de que a planta física tão fundo se gravara nas sensibilidades barbáricas. Não seria apenas Albuquerque, o lusitano por um velho parse comparado ao macedónio: os portugueses, «nas armas mui destrados», como traz a Miscelânea de Rezende, nervos e linhas atléticas como só o ofício da guerra e a sua acurada preparação podem produzir, constuiriam, para o asiático, a segunda investida de Helenos prodigiosos.
A verdade, pois, é que, descrevendo o Condestável, se descreve o homem português dos maiores serviços históricos; o homem, sobretudo, da epopeia de Aviz. O, entre todos, egrégio caso do princípio cria, e prefigura, as personagens do processo colectivo que tem raiz nesse princípio. O padrão da arrancada inicial ver-se-á repetido, corpo e alma, na epopeia da expansão que, como tudo, vive sob o seu signo.
***
Corpo e alma. — Se o retrato que acabamos de ver é, com a cruz que se recorta no peito do guerreiro, um retrato também espiritual, supremamente espiritual é o outro para que agora nos viramos. Trata-se do que nos dá Nun`Álvares, donato carmelita, e que «deve ser cópia do quadro original de Mestre Florentin, oferecido pelo Prior D. Frei João Manuel ao Convento do Carmo, onde ornava o espaldar do arcaz maior da sacristia».
Aqui, nada de esfusiante. Tudo é recolhimento. À figura-pregão sucede a figura-silêncio. Não que haja antinomia entre ambas: andou o homem de guerra nutrido do amor divino, e amiúde levou o frade envergado o arnês por baixo da estamenha. Mas enquanto no guerreiro está devidamente o Conde de Ourém, primus inter pares, o senhor social, no retábulo de Mestre Florentim está aquele que não quisera «que lhe chamassem outro nome, senão Nuno, por humildade». São dois estádios os mundos compreendidos nestes retratos. Com o segundo, que no momento nos ocupa, o intérprete dos homens junto da divinal Justiça sucede ao intérprete da justiça política junto dos homens. No retrato do donato não há virulências — está o humano virado para as paisagens infinitas da alma, o ser dedicado à oração, à penitência, o contemplativo. E nesta pintura tão reproduzida, melhor ou pior, até ao nosso tempo, como que emerge, por fim, o que o Condestável sempre acalentou: a vocação religiosa. Uma disposição que se não havia de cumprir antes do serviço de El-Rei seu Senhor e da pátria Terra onde nascera. Impregnado de Silêncio —, os olhos, orgãos da variedade e da dissipação, inda mais pequenos do que no quadro do guerreiro, a calva dominante, os traços finos do nariz, da boca, das pálpebras, definitivamente acentuados —, o retrato do donato é a imagem daquele que «chegou». Consumado o itinerário, o homem está na Paz, na antecâmara do Céu. Os olhos mantêm-se vivos e penetrantes, cheios duma sagacidade que só com a morte se apagará; mas a expressão é de quem se ensimesmou, deixados os caminhos da acção concreta. Enquanto o guerreiro poderia estar interessado, por razões maiores, em que o representassem plasticamente, também por razões maiores o donato se não ofereceu ao retrato. Pintaram-no. Colheram-no absorto, uma e muitas vezes, e traçaram-lhe o debuxo. Quiçá até o fizessem de lembrança. A máscara era impressiva: nariz rectilíneo e longo, ortognatia excelente qual os do religioso que fora Condestável a se metera a monge, boca voluntariosa, propósitos firmíssimos quais os deste paradigma de idealistas não haveria outros.
***

Se nos interrogamos sobre os mundos interiores do Condestável, a resposta terá de vir principalmente das bandas duma entidade, hoje tão esquecida e desamada: a Família. Só ela, duradoira, multissecular, organizadora tenaz e repousada dos caracteres, artífice sem pressas tal como a ideia de que nos fala Hegel, ou voz maior que nos traz um eco da Eternidade, só ela, do ponto de vista da diferenciação pessoal, nos explicará o indivíduo. Pertencendo a uma prole numerosa, criatura situada na abundância dos ímpetos elementares, bastardo, filho segundo, Nun`Álvares é um daqueles frutos em que na sucessão das gerações a Raça e o Tempo paulatinamente se esmeraram. Há a Família e há a Educação: o homem que deles resulta há-de afirmar-se totalmente um dia, ao choque das circunstâncias.
Pela parte do Pai, nasce o Condestável sob o signo da generosidade. Generosidade no sentido hoje trivial, e generosidade no sentido etimológico: o que se vincula ao genos e ao vigor do sangue. Com efeito, seu primeiro avô referido pelo cronista era «um grande cavaleiro muito fidalgo e de grande sangue», Gonçalo Pereira, «que dava de bom coração o que havia, assim aos que o serviam, como aqueles que o não serviam», de tal modo que muito «era prasmado de alguns seus chegados». Um avô portanto, cujo procedimento parece que tocava as raias da prodigalidade, se é que se não tratava, antes, de larga magnanimidade. Cepa fecunda, pois que a virtù dos Pereiras de todas as formas essenciais se havia de manifestar, seguiu-se-lhe, na linha atávica do Condestável, seu filho, também Gonçalo Pereira, que foi arcebispo de Braga. Manteve este a exuberância própria da estirpe, tendo um filho que houve nome Álvaro Gonçalves Pereira. E, aqui, chegamos ao limiar da vida do Condestável: é que D. Frei Álvaro Gonçalves Pereira, Prior da Ordem do Hospital, é o pai de Nun`Álvares. Um pai com as virtudes e os defeitos dos seus, homens fortes, dadivosos e impulsivos, aos quais a consciência comum não opunha as resistências hodiernas. Homens que, sem embargo de imperativos religiosos, tinham filhos naturais que criavam na sua própria casa. — D. Frei Álvaro Gonçalves Pereira é o varão que por tudo se impõe ao meio, e aquele que mais, porventura, pesará na personalidade do gigante do clã, tronco de todas as famílias reinantes da Europa. Conselheiro de três reis de mui desigual cariz — D. Afonso IV, D. Pedro e D. Fernando — o Prior do Hospital é o senhor do velho tempo, que levanta castelos e edifica ermidas, pação e devoto de Santa Maria, deveras propenso a jornadear, com um passadio viajeiro que anuncia claramente a assombrosa força itinerante de Nuno. Há nele, portanto, do mesmo passo, as pétreas expressões da estabilidade e essa tendência moderna para conhecer o longe que o leva com grossa companhia até à ilha de Rodes.
Já da parte da mãe, nasce o herói sob o signo da austeridade. Duro foi o regime que por toda a vida se impôs Iria Gonçalves, dona de grande virtude e extraordinário coração, depois que teve Nun`Álvares, Fernão Pereira e alguns outros, do Prior do Hospital. Regime dum matiz carregadamente ascético que somado à profissão religiosa dos membros da família paterna nos elucida acerca da compleição vocacional do herdeiro. — Iria Gonçalves é a mulher sofredora; a mulher admirável que saberá abdicar, vendo os filhos partir a receber criação em casa do pai. E é ela quem, apesar de, como mulher, ser o factor da permanência com que a vida equilibra a instabilidade ou propensão inovadora própria dos homens, quem, primeira, entre todos, sentirá a justiça que ao filho assiste quando, no viço da juventude, este a contraria com dizer: «que Deus não quisesse que por dádivas e largas promessas ele fosse contra a terra que o criara; mas que antes dispenderia seus dias e espargeria seu sangue por amparo dela»; «de guisa», continua o cronista, «que onde ela vinha para reduzir seu filho para serviço de El-Rei de Castela, Nun`Álvares reduz e ela para serviço do Mestre, dizendo-lhe ela e encomendando-lhe que [,] «pois assim era [,] que servisse o Mestre verdadeiramente, pois que com ele ficara, e se não partisse dele em nenhuma guisa, e que ela faria logo vir para ele seu filho Fernão Pereira, seu irmão». — Depois de tudo, é sempre a mãe que melhor pode compreender e estimular o filho. Que íntimo, inefável deleite terá sentido Iria Gonçalves ao ouvir Nun`Álvares! O menino das suas entranhas, carne da sua carne, estava ali, virilidade prodigiosa, a perfilar, sublime, e nem por isso menos razoado e calmo, a palavra da Justiça! Que contentamento! Sim, era bem o filho do seu ânimo austero e porfiador; da sua alma tenacissima de mulher! Os seus jejuns e abstinências tinham-se transformado nas bençãos que envolviam o jovem!
***

Há a Família e há a Educação; o homem que delas resulta há-de afirmar-se totalmente um dia, ao choque das circunstâncias. No seio da primeira recebeu o Condestável a segunda — essa espécie de leite ou de berço que, sem contradição, acompanhará o indivíduo, dinamicamente, até à morte —.
Com a juventude, e mesmo, acabamos de o inculcar, com a idade adulta de Nun`Álvares, defrontamos o tema excelente da educação integral. O homem-cavaleiro terá de girar na órbita de todos os amores essenciais: o de Deus, o da Pátria, o do Rei, ou, por outras palavras, o do Espírito, o da Sociedade ou da Polis, o da Herança e da Ordem. E haverá de corresponder-lhes mercê duma idoneidade que vai da mais intensa prática confessional até ao constante exercício desportivo e militar, passando pelos trilhos imensos da Inteligência e da Leitura. Uma formação inteira não é mais do que a resposta ao homem inteiro. Esta a visão exemplar da verdadeira Educação: aquela que na pessoa ausculta todas as necessidades, para a todas redarguir amorosamente. Esta a visão que, partindo do homem livre, tem por meta o homem livre. É a concepção clássica, helénica, romana; a paideia que pretende a mais completa floração da unidade, e que se não deve confundir com ecletismo. É a concepção que se casa com o anelo de prud`hommerie alimentado pelo rei perfeito que foi S. Luís, rei de França. Expressa no âmbito medieval pelos trivium e quadrivium que incorporavam ciências e artes, a especulação e o adestramento dos sentidos, começa precisamente no tempo do Condestável, por toda a Europa a partir de Itália, a ganhar máxima expressão, com o ideal do homem perfeito, ou seja o tipo daquele que mais potências da alma e do corpo exercita, dentro duma arquitectura, duma ideia de finalidade unificadora que a tudo envolve. Que tal plano de Educação seja nítido na proteica capacidade da Ínclita Geração e, passando por D. Afonso V, na de todos os portugueses grupos da Expansão e da Conquista, é cousa que ninguém pode pôr em dúvida. É evidente a mais ampla visão do homem educado, ou o apego a todos os sectores da actividade, quando, no fim do estádio avizense, Camões escreve o famoso verso «mas numa das mãos a lança, e noutra a pena». Como também já ela se patenteara no caso de Duarte Pacheco Pereira, Albuquerque ou João de Castro, homens de estudo e de acção, criadores intelectuais e militares, estudiosos de gabinete e protagonistas das cenas mais cruentemente dramáticas. O que não está tão generalizado é que essa visão dual, para assim lhe chamarmos, tenha submetido a educação do Condestável, ou por outras palavras, que tenha ele recebido uma formação integral.
Recebeu-a, de facto. A sua casa viveu tão cheia da devoção a Santa Maria, como dos cuidados a que hoje, com linguagem renascida, chamaríamos cívicos, como, decerto, das leituras do tempo, atendidas sobretudo auditivamente. A preocupação religiosa em que primou a alma do Condestável, e lhe sublimou o Serviço do Rei e da Terra, foi acompanhada da cultura profana. Uma cultura de sentido místico, instilada pela literatura de senhores, mormente a que pertence ao ciclo, também de proveito e exemplo, da gesta cavaleira. Uma cultura, ou uma literatura, que exerceu a maior influência no ânimo generosíssimo do Condestável. Foi o lido e relido, ouvido in-folio das proezas dos cavaleiros da Távola Redonda que decerto urdiu nele a gama de convicções-força a que, qualquer que ela seja, obedece todo o singular homem de acção. Se Nun`Álvares antes dos motivos e alvos concretos da acção política, obedecia a móbeis do melhor idealismo, isso se deveu às páginas em que Galaaz, figura paradigmática, lhe aparecia como aquele em que a força estava assimilada à pureza, — uma ideia que o Condestável abraçará até ao fim da vida. — Nun`Álvares é um homem do seu tempo, dinamizado pelas leituras do tempo. A sua conduta é deveras o fruto de viagens mentais com as quais se lhe profundamente harmonizava a natureza. Por aqui se vê a importância do nexo entre literatura e acção. No caso de Nun`Álvares é ela incontroversa. Já o pensávamos, pela convergência de reflexões filosóficas e da subterrânea inspiração em nós deixada por Oliveira Martins, lido havia muito, quando encontrámos na Corte na aldeia de Francisco Rodrigues Lobo o passo que transcrevemos: «E, no que toca ao exemplo, um Capitão valeroso houve em Portugal, que o não teve melhor o Império Romano, que, com a imitação de um cavaleiro fingido, foi o maior de seus tempos, imitando as virtudes que dele se escreveram». O que é outra forma de dizer o que vem na Crónica do Condestabre. «E com isto havia grão sabor e usava muito de ouvir e ler livros de cavalarias, especialmente usava mais ler a história de Galaaz, em que se continha a soma da Távola Redonda».
A influência das leituras que cercaram Nun`Álvares é evidente. O Condestável levará a vida ligado às figuras exemplares do ciclo arturiano. Será o escudo de Galaaz, a cruz sanguínea em campo branco, que lhe dará o esquartelado pendão, onde o culto do Senhor e de Santa Maria se acompanhado dos intercessores São Tiago e São Jorge. Como o filho de Lançarote, ou como os seus pares mais afins, Percival e Boorz de Gaunes, nunca por nunca se recusará Nun`Álvares ao combate, iluminado pela palavra das Escrituras de que contra a Justiça não prevalecerão as potências do mal. A batalha, alguma vez e sempre, será de um contra cem? Não importa. O valor, a qualidade, suprirá a diferença quantitativa. Sozinho, sempre Galaaz venceu contra os bandos mais numerosos, batalhando sem uma hesitação, sem um arrepio de dúvida. Contra ele nada podiam as armas leais, como não podiam as desleais — o veneno e a intriga. Tal como Galaaz, imune à peçonha, tal como S. Paulo, indiferente à mordedura da áspide, Nun`Álvares terá a certeza de que o amor de Deus, da Pátria e do Rei, guardado no templo impoluto do corpo, lhe dará a vitória e todas as forças para ela. A isto se prende o desejo de «provar seu corpo» quando no gesto do paladino, desafia o Conde de Maiorca, «que era mui forte homem de armas», ou repta João Ançores, filho do Mestre de Santiago, «que era mui bom cavaleiro». A posição do Condestabre não permite dúvidas: é ele próprio quem, uma vez, em Extremoz, num discurso persuasivo como todos os seus, afirma «que já muitas vezes aconteceu os poucos vencerem os muitos, porque o vencimento em Deus é todo e não nos homens» — «Eu só, com os meus vassalos e com esta» — razão tinha o épico que a tudo genialmente definiu com a mais certeira visão lusíada.

***

De tudo, ou seja da Educação, do ambiente familiar, dos livros mores da época e da natureza própria, claro está, tirou Nun`Álvares, arquétipo exaltante de portugueses, o admirável espírito de Serviço. O herói, é sempre modelar; mas, se é possível, assume decerto perfil incomparável nos momentos em que exprime com segurança prodigiosa o santo desejo de Servir. E também aqui — é verdade que depois dos muitos casos medievais representados no fidelíssimo Martim de Freitas —, também aqui, dizemos, inaugura o Condestável, para a fase avizense da nossa história, essa galeria de enormes gestos de Serviço, de um Serviço amado na plenitude da consciência, de que serão autores todos os nossos Grandes do Mar e do Além-Mar. A ética, a moral do Serviço, o «pola lei e pola grei», o «nada possuo do meu senão uma verdade seca e breve que Nosso Senhor me deu», de D. João de Castro, contorna-se de maneira acabada e cheia, início de nova etapa, com Nun`Álvares Pereira.
Servir, Servir, Servir: uma ânsia severamente orientada e respondida. Uma ânsia serena, diríamos. De tal modo, que, arrancando só com os de sua casa, lutando numa desproporção espantosa, cumprindo um itinerário vertiginoso, conquistando a terra lugar a lugar, tendo recusado as benesses infindáveis que lhe adviriam de estar no partido do rei castelhano e de alinhar com seus irmãos, sendo, enfim, o único homem que ao Mestre oferece Certeza, Amor e Fidelidade inabaláveis...: pois bem, apesar de tudo, Nun`Álvares acha que serve pouco. É culminante, e para ler fremindo, aquele momento em que o herói, precoce repreendedor de velhos, redargue ao conde Álvaro Pires de Castro nas tredas evasivas do conselho régio. É situação única essa em que um esplêndido moço diz, contra si, modesto a um tempo que sublime, a verdade que cada rapaz português deve trazer no coração: a de que sempre servimos pouco, e de que só isso nos pesa. Nun`Álvares está aí como sempre, como nunca. E nele estamos nós, todos os que amamos o Rei e a Terra: quando tudo fizéssemos, nada nos pareceria. Reproduzamos o cronista (Crónica do Condestabre de Portugal Dom Nuno Álvares Pereira, Cap.º XXV): «O Conde D. Álvaro Pires era mais inclinado à parte de El-Rei de Castela que ao Mestre. E depois que viu que Deus encaminhava os feitos do Mestre, veio-se para ele a Almada, onde o Mestre então estava, e ofereceu-se-lhe e ficou; e o Mestre o recebeu bem. E um dia teve o Mestre conselho com o Conde e com D. Pedro seu filho, que se assim para ele viera, falando com eles claramente seus feitos: todas as coisas que já por ele passaram, e o que tinha ordenado. E o Conde por ser como era grande, e de si, por ser mais da parte de El-Rei de Castela e da Rainha, havia por nada os feitos do Mestre, dizendo-lhe que havia forte obra começada, e muito duvidosa de acabar, e outras razões semelhantes, de que a Nun`Álvares, que no presente estava, não prouve, e não poude estar que lhe não respondesse em esta guiza: “Digo-vos, senhor Conde, que pois vós com meu Senhor e Mestre ficastes, e verdadeira vontade haveis de o servir, tal conselho e palavras quais lhe vós dizeis não é bom conselho: nem ele não vos deve de crer, antes de ir por seu feito em diante, e não contra el-rei de Castela que é um poderoso rei, mas contra todos os reis do mundo, cá tem coração e razão de o fazer, e não outro nenhum. E todos os bons portugueses têm razão de o seguirem e servirem até à morte. E Deus que o a isto encaminhou, e lhe dá os começos que lhe dá, o trazerá em sua guarda, e trazerá seus feitos ao fim que ele deseja, e quem vontade houver de bem e lealmente servir, bem terá tempo em que o sirva.” E o Conde com sanha lhe respondeu: “E isso, Nun`Álvares, como falais vós assim? Não haveis empacho de tão solto falardes?” Disse: “Não hei empacho. Nem de quanto disse não me pesa, senão por servir pouco.” Isto respondeu Nun`Álvares. E então falou D. Pedro, filho do Conde, contra Nun`Álvares: “Não haveis vós vergonha, Nun`Alvares, de assim falardes contra o Conde meu pai?” “Digo-vos, disse Nun`Alvares, que do que a vosso pai disse eu, dele nem de vós não hei vergonha: cá disse o que devia por serviço do Mestre meu senhor.” E, antes que as palavras mais procedessem, o Mestre mandou calar todos, e calarão-se.» (Itálicos nossos.) — Aí fica o texto sem comentários. Só que aproveitamos para insistir na posição. Insatisfeitos connosco? Sempre, — graças a Deus Nosso Senhor, a Quem rogamos que assim nos mantenha em prol do comum. Nem de quanto disse não me pesa, senão por servir pouco.
A alma se nos levanta a pedir a Deus que o rapaz da Mocidade Portuguesa se detenha neste ponto, considerando a maravilha do exemplo, e confirmando-se no empenho de Servir. Tu, rapaz — porque este escrito é para ti —, deves empregar a tua juventude em Amar e Servir aquilo para cujos Amor e Serviço foste criado. Foi-nos a Liberdade concedida para que nos demos à iniciativa três vezes magnífica de a comprometer por Amor, lucidamente, deliberadamente. A Juventude só existe, e só é precoce virilidade, quando é oblação generosíssima em aras de Serviço. Cuidai naqueles moços que sempre estiveram ao redor de Nun`Álvares, minoria resoluta ante a impassibilidade do grande número. Pensai que esses moços reincarnaram para tentar o impossível em Alcácer-Quibir, ombro a ombro com o Rei «maravilha fatal da sua Idade», que foi D. Sebastião. Pensai que só Deus sabe quando, depois de duas, chegará a terceira prova de fogo, exigida à juventude portuguesa. Ah rapaz, rapaz de Portugal, medita bem a serena insatisfação ou a implacável certeza do Condestável: só me pesa servir pouco. Que sejamos como ele que, explicando a D. Fernando as razões do repto lançado a João Ançores, dizia: «E a segunda porque, posto que eu aí, falecesse, seria com minha honra: e entendo que faleceria bem pois é por vosso serviço.»

***

A vida de Nun`Álvares é a constante presença do maravilhoso. Uma vida que nos silencia quaisquer dúvidas, e faz serenamente saber da prioridade do espírito em todas as conjunturas.
Depois de conhecido o angustioso cafarnaum que é o período da história portuguesa em que se recorta a original posição política do Condestável, nada poderá intimidar-nos porque a nenhum problema colectivo reputaremos insolúvel. O medo, o medo generalizado, ou a atmosfera moral de que nada há a fazer ou poderá ser eficientemente tentado, é o que caracteriza sobremaneira a fase onde é Nun`Álvares a maravilhosa contradição. Depois de duas guerras mal lidadas com os castelhanos, e representados estes no país por um partido estrangeirizante que se justifica, a partir de certo momento, com o direito ao trono do monarca espanhol (e, valha a verdade, com a aparente inexistência doutra solução...), caem os portugueses numa depressão moral de que são sobejas provas as deserções e os súbitos abandonos que desfalcam as fileiras devotadas à causa nacional, mesmo durante os períodos eufóricos da luta. Do princípio ao fim da peleja militar-política, largamente sustentada nos reinados de D. Fernando e de D. João I, abundam irrefragáveis os momentos de hesitação, de dúvida, fraqueza, descoroçoamento, por parte dos bons portugueses. São os homens responsáveis das várias localidades que se inclinam a um e outro lado sem saber que partido tomar; são os melhores nomes portugueses que se não atrevem a tomar a iniciativa das operações, e chegam a regozijar-se por um enganado rebate de Nuno não corresponder à presença do exército castelhano; é o próprio Rei D. Fernando que não dá aos movimentos da paz e da guerra aquela desenvoltura indispensável, sempre na maior indecisão e numa timidez que era a do grande número. Vamos dizer que o Mestre, apesar de possuir entranhas de Estado, não entendeu, uma e outra vez, o seu irmão de armas?...
Está a ver-se, então, que maravilhosa é a conduta do Condestável. Uma maravilha que se casa com as posturas do ciclo arturiano, onde o herói poderá ter, ele só, razão, e vantagem, já o dissemos, contra multidões incontáveis — que o mesmo é contra a geral mediocridade. Uma maravilha que dá expressão política ao inefável cristão.
Maravilhosas, providencialmente maravilhosas, são as faculdades do Condestável, de contínuo amparadas pela Graça. Maravilhosa é a sua coragem em todas as situações, e logo, por exemplo, quando luta — já aí só —, nas margens do Tejo, contra grossa hoste de castelhanos, ou quando atravessa, espantosamente, a esquadra inimiga, navegando em dois batéis e mandando dar às trombetas. Maravilhosa a sua decidida firmeza quando, menosprezado no banquete em Elvas oferecido a D. João de Castela, derruba com seu irmão Fernão Pereira toda uma mesa do festim, num gesto e num repouso d` alma que levam aquele príncipe a dizer que Nuno fizera bem «e que quem ali tal coisa cometia em tal lugar, sentindo, a [pouca] honra que lhe era feita, que para mais seria seu coração». Maravilhosa a sua continente e branda palavra, ou essa eloquência «essencial» de que mana um poder persuasivo único em meio dos desequilíbrio e agitação comuns: «estas palavras e outras muitas e boas lhes disse em tal guisa que os mudou de suas não boas tenções». Maravilhosa a total placidez do seu ânimo, que se expressa nas palavras de Atoleiros, nas disposições e mudanças tácticas de Aljubarrota, nos desprendimentos da oração em plena batalha de Valverde, em todos os transes, afinal, da mais acesa fúria circunstante. Maravilhosa a sua porfia em ser, por todos os modos, o braço que execute quanto seja serviço do Rei seu senhor. Maravilhosa a alegria singular da sua tão limpa consciência: «por ser homem novo, às vezes fazia na terra das suas, segundo seus vizinhos; e, porém, não tanto que sempre em ele não fosse o temor de Deus». Maravilhoso o seu cuidado dos pequenos que o levava a não abandonar Álvaro Coitado nas mãos do inimigo ou, o que é muito mais difícil, a não esquecer, depois do triunfo, as promessas feitas na hora das dificuldades, qual ocorre no caso do alfageme de Santarém. Maravilhosa, enfim, a sua Solidão, irmã gémea da sua Fé. Num portentoso diálogo com as circunstâncias, só o Condestável alimenta amores e certezas que promoverão a aventura sem par. Maravilhosa, sobretudo, a Solidão do Condestável... Quem leva a alma cheia de Deus, da Pátria e do Rei tudo possui — nada lhe falta —, nunca por nunca pode estar só. Mas a verdade é que, na empresa, terá pouca ou nenhuma companhia física e moral. A paisagem convivente, raro se coaduna com os tesouros que cada um traz dentro de si. À inanidade moral replica costumadamente a irresponsável relação de muitos; como também as maiores solidões físicas são, com frequência, o anúncio de imensos dotes espirituais. Se determinado homem segue sozinho, e forte e resoluto e venturoso, não obstante, é que o impulso lhe vem da própria alma — é mercê dela. As molas principais, não podem, com efeito, estar fora duma compleição própria; não pode o vigor moral acendrar-se que não seja ao contacto do que, na acção, transcende a nossa relação com os outros.
É, afinal, o que se verifica em Nun`Álvares. Porque desde que se «apartou só pelo paço a cuidar que havia de ser do reino de Portugal que assim ficava deserto, e quem o defenderia», até que se meteu a frade no convento do Carmo, os homens do «grande mundo» apenas lhe deram Solidão. Deram-lha os seus iguais, deram-lha os seus parentes, os seus amigos, os companheiros de armas, o próprio Rei. Os seus pares estavam quase em bloco com Castela. Seus irmãos eram outros tantos agentes que diligenciavam trazê-lo à traição do Rei e da Terra. Os amigos provaram, amiúde, não o ser, logo que a sua recta justiça teve também de incidir sobre eles. Os companheiros de armas terão, em maioria, prezado a vitória, e alguns até guardado o partido do mais forte quando esse pareceu ser o novo Conde de Ourém, logo isolado no terreno se o favor régio parecia estremecer. O Rei, até ele!, não raro lhe impediu a iniciativa e contrariou os ímpetos de bem servir. Como não haveria o Condestável de se sentir só, se alguma vez demorasse os olhos no contorno?
Deo gratias. Porque assim Nun`Álvares não desfitou as riquezas do seu castelo interior, os inigualáveis amores de Deus, da Pátria e do Rei, e, com eles, as faiscantes palavras, o ouro puro da Dedicação e do Serviço.
Maravilhosa, sim, sobretudo, a Solidão do Condestável...
***

A par de tudo, é a vida do Condestável um itinerário prosseguido. E que itinerário! Que cadência! Que impulso heróico! — Merece a pena destacar desse itinerário a parte cumprida, primeiro, nas campanhas do Alentejo e do Minho, depois, no defrontamento da grande invasão que tem por desfecho Aljubarrota.
Trata-se, afinal, do troço quiçá mais significativo. O Condestável multiplica-se, está em todas as frentes. Corre de Norte a Sul, de Leste a Oeste. Hoje no Alentejo, amanhã na Beira e no Minho; tão depressa no Porto ou em Chaves, como em Lisboa, Évora ou Extremoz. Na mesma região, de lugar para lugar — uma dobadoira: o grande ritmo. Fases há, proteladas, mantidas, em que o Condestável nunca dorme duas noites a fio na mesma terra. É deveras impressionante que, sem meios, conduzindo uma hoste cuja velocidade de marcha se há-de, necessariamente, pautar pela da peonagem, mereçam os seus aparecimentos nos vários teatros da guerra a consabida expressão: «surgiu como um raio». É um movimento constante, tenso, um vai-vem que não pára, um andamento em que todos nos aparecem pletóricos de esforço. É que o grande ritmo da mesnada condestabriana terá sido equiparado pelos maiores capitães da Guerra dos Cem Anos, Du Guesclin ou o Príncipe Negro? Há uma tensão de propósito heróico que só pode existir nos pequenos exércitos, aos quais electriza a presença dum chefe singular. É o que explica o estado de permanente alerta, o dormir pouco e andar muito, o nada comer amiúde, o sobrelevar das normas de municiamento do soldado, que caracterizam o passadio no campo do Condestável. Quem com ele vai, a ele tem de se assemelhar: tem de ser extraordinário na conformação, na resistência, no «poder de encaixe», no frenesi, calmamente assumido, no entusiasmo reflectido, na Certeza... Ah! que hoste formidável a de D. Nuno. Hoste esgrimida qual manípulo romano, tão dócil e plástica era. Não admira: a um máximo de dificuldade tem de corresponder um máximo de renúncia e disciplina. Renúncia, disciplina, combatividade inenarrável, etc, etc? Reproduzamos o itinerário, devidamente iluminado pela cronologia, e logo verificaremos que as palavras que alinhamos estão onde devem estar.
Tendo acordado o Mestre, em fins de Fevereiro de 1384, «mandar a Nun`Álvares à comarca de entre Tejo e Guadiana com duzentas lanças por defensão dela» — porque é aqui que começa a fase do itinerário que passamos a descrever —, logo, Nun`Álvares faz que seja cobrado o soldo dos seus e passa a Almada. Já em Almada regressa a Cacilhas contrariando a marcha, afim de participar no assalto a algumas naves castelhanas que acabavam de entrar no Tejo. Cumprida a acção, volta a Almada para, sem detença, passar a Coina. No mesmo dia em que sai de Coina chega a Setúbal, tendo de se alojar no arrabalde pelo mau acolhimento que os da cidade lhe fazem, inda hesitantes entre o Mestre e o rei de Castela. Estando no arrabalde, a passar a primeira noite, um falso alarme fá-lo marchar, «em regimento, por ordem, com suas batalhas, a pé, até além de Palmela». Desde aqui, dirige-se Nun`Álvares para Montemor-o-Novo, onde se detém o tempo suficiente para convencer os homens bons do lugar a abraçar a causa do Mestre. Decorrido pouco tempo, parte para Évora, saindo desta para Extremoz logo que junta mil «antre besteiros e homens de pé». Estando em Extremoz a aguardar reforços e a treinar militarmente os seus, trata, a um tempo, de aliciar as gentes, como já fizera em Montemor, produzindo, num meeting, a célebre afirmação: «cá vos digo e prometo de verdade que posto que aí tivesse meu pai eu seria contra ele por serviço do Mestre meu senhor, e por defender a terra que me criou». No caminho de Fronteira, trava, uma meia légua antes, a sua primeira batalha, a de Atoleiros, que é a mui promissora vitória dos começos. Sobre o recontro vai dormir, altas horas da noite, a Fronteira, para se transferir na manhã seguinte, «sem repousar mais de seu trabalho», a Monforte, onde escaramuça com a muita gente de castelhanos que aí está. No dia seguinte, Quinta-Feira de Endoenças, fazendo o Condestável, a pé, e descalço, uma romagem a Santa Maria de Assumar, uma légua de Monforte. Estamos nos primeiros dias de Abril. De Santa Maria de Assumar dirige-se a Arronches, cujo castelo lhe é entregue pelo inimigo. Tendo mandado tomar posse de Alegrete, que também se lhe entrega, regressa a Évora.
Estando em Évora, sempre nos maiores cuidados da guerra e da paz, onde ao lado dos exercícios militares hão-de ter largo cabimento mantidas conversações e uma acesa troca de correspondência, determina-se a ir ao Porto, a fim de embarcar na frota que aí se prepara para socorrer Lisboa. Faz a viagem «com grande aguça» nos meados de Junho, transitando por Tomar, onde se demora um dia, e por Coimbra, onde está a ponto de ser vítima duma conjura, por cujos promotores intercede junto dos seus. Porque a esquadra parte, adrede sem ele, primeiro do Porto, e depois de Buarcos, volta de Coimbra a Tomar, desde onde se desloca a Torres Novas, para logo regressar outra vez, a Tomar. De aqui segue para Punhete, onde se demora alguns dias, findos os quais, na estrada de Santarém, junto da pequena ribeira chamada de Alperreijão, surpreende e vence um comboio de castelhanos. Estamos na segunda quinzena de Junho. Parte para Évora. Saindo de Évora, conquista o castelo de Monsaraz. Volta a Évora, onde sabe que João Rodrigues de Castanheda está em Badajoz a preparar uma entrada em Portugal: logo se faz caminho de Elvas «polo escusar do trabalho». A meia distância entre as duas cidades do Caia, trava uma forte escaramuça de que resultam prisioneiros alguns castelhanos de prol. Fica o Condestável em Elvas, de onde, poucos dias depois, marcha a surpreender o inimigo na passagem por Ponte de Sor. Estamos ainda na segunda quinzena de Junho. Não chegando a tempo a Ponte de Sor, depois de etapas diárias de sete léguas, dirige-se a Évora. Mal chegado, vem-lhe de várias bandas a notícia de que se congregam numerosas forças para o vencer no Alentejo. Manda lançar pregão e consegue engrossar a hoste. Sabendo, uma manhã, à saída da missa, que os castelhanos devem vir entre Arraiolos e Vimieiro, logo segue a combatê-los; tão rápido parte que nem a si, nem, nem aos seus consente refeição. Passando em Oliveira dois dias e uma noite, sem mantimento algum «que consigo levasse». Regressa a Évora, após ter esperado os castelhanos beldadamente. Regressado a Évora sem muita da gente com que partira, a qual de cansaço se fora ficando pelo caminho, reune dois conselhos, nos quais sustenta ir surpreender o inimigo, primeiro em Viana, depois em Arraiolos. Encontra resistência nos do conselho pela míngua de gente; e a verdade é que o inimigo dispersa ao saber do desígnio do Condestável.
Depois duma temporada em Évora, aproveitada necessariamente de todas as formas políticas e militares, parte Nun`Álvares para Palmela, a cumprir uma convocação do Mestre. Estamos já em pleno mês de Agosto. A chegada a Palmela impressiona extraordinariamente o arraial castelhano, disposto em torno de Lisboa: ninguém soube da sua viagem, tão rápida foi, apesar da canícula estival. Toma o castelo de Palmela que ainda estava pelo inimigo. De Palmela corre três vezes a Aldeia Galega, a ver se se avista com o Mestre. Mantendo-se em Palmela, entrega-se a caçar no monte, «por espaçar». Decide marchar sobre Almada onde está larga hoste de castelhanos, comandados por Pero Sarmento. Executa o propósito na alva de 31 de Agosto, surpreendendo fulgurantemente a povoação, que toma, e obrigando o inimigo a refugiar-se no castelo. «E acabada a obra Nun`Álvares se foi por aos moinhos de vento que é no cabo do lugar, com sua gente e bandeira esventolada, olhando ao arraial de El-Rei de Castela, que jazia a Santos.» Como com Alexandre, tantas vezes, o ímpeto de Nun`Álvares não é acompanhado: a luta no arrabalde de Almada inicia-a ele antes de todos, com só dois moços de estribeira, aos quais se juntam seguidamente três escudeiros e alguns peões. Estamos precisamente no último dia de Agosto. Volta a comer a Coina, onde se reparte o esbulho do lance, após o que regressa a Palmela. Estando aqui, sabe do levantamento do cerco de Lisboa e pretende atalhar a retirada do Rei de Castela, ao que o Mestre se opõe, mandando-lhe dizer que o aguardasse. Como seu senhor não venha, o Condestável passa o rio em dois bateis, por entre a armada castelhana, mandando dar às trombetas. Estamos no fim de Setembro. Em Lisboa, demora-se dois dias, não conseguindo obter do Mestre autorização para dar batalha a D. João de Castela. Em seus bateis, volta a passar o rio, de retorno a Palmela. De aqui segue para Setúbal, e logo para Évora. — Em Novembro, consegue fazer que os castelhanos abandonem Portel. Estando em Évora tem rumores de que alguns se querem levantar contra o Mestre na vila de Elvas, o que o leva a seguir imediatamente para aí. De Elvas sai a tentar a conquista de Vila Viçosa por surpresa, o que não consegue, morrendo na acção seu irmão Fernão Pereira, e ficando preso Álvaro Coitado. Frustrado o golpe, passa a Borba, e daí a Extremoz, onde decide o assédio de Vila Viçosa que efectua sem resultado. Regressa a Extremoz. Atingimos o fim de 1384.
Estando o Condestável em Évora, tem notícia de que se prepara uma concentração de tropas castelhanas para surpreender o Mestre que cerca Torres Vedras. Toma, por isso, a iniciativa de se unir a ele. Levantado o cerco, marcha o Condestável com o Mestre para as Cortes de Coimbra, onde há os debates intermináveis sobre quem cingiria a coroa portuguesa. Partindo de Coimbra, vai ao Porto, por mandado do Rei, a armar uma frota para combater no Tejo uma outra, castelhana, que nele entrara. Não conseguindo o desejado, pretende ir em romaria a Santiago de Compostela. Levando esse norte, toma de passagem, já em meados de Abril de 1385, o castelo de Neiva, que era um «dos fortes castelos do mundo». De Neiva desloca-se a Darque e, seguidamente, a Viana de Caminha, as quais conquista. Folgando em Viana três ou quatro dias, parte em direcção de Santiago e atinge o rio Minho. Entregam-se-lhe, entretanto, por enviados, Vila Nova de Cerveira, Caminha e Monção, que estavam por Castela. Encontrando-se numa aldeia a par do Minho, pouco tempo havia, corre a Braga que também lhe é entregue, cidade e castelo. Logo após — estamos em Maio —, é o Condestável chamado a Guimarães, a que D. João I punha sítio. Depois de algumas instâncias junto de Gonçalo Pires de Camões, parente de sua mulher, que por Castela tinha o castelo de Guimarães, volta o Condestável a Braga. Desta cidade, segue para Ponte de Lima, que toma, juntas já a sua e a hoste de El-Rei. Volta a Braga, onde D. João I é seu hóspede.
Havendo, em Junho, notícia de que o Rei de Castela vem, com todo o seu poder, sobre Portugal, é concertado dar-lhe batalha, pelo que El-Rei e o Condestável fazem caminho, desde Guimarães, pelo Porto e Coimbra, em direcção a Lisboa. «E a par de Santarém passaram além do Tejo contra Muge», onde se trava uma forte refrega. O exército torna a passar o Tejo, em sentido contrário, e acampa. É nesta paragem, que alguns cavaleiros ingleses, mortos de fome, comem os últimos cinco pães com que o Condestável ia fazer uma refeição. Levantado o campo, parte a hoste para Alenquer. Estando nesta vila, ordena o Rei que vá o Condestável a recrutar gente entre Tejo e Guadiana, o que este logo trata de cumprir. Passando por Muge, vai Nun`Álvares dormir além de Salvaterra. De aí segue para Montemor, onde sabe dum desbarato de portugueses, facto que muito o «anoja». Parte para Évora. De Évora para Extremoz. Incansável no labor de convocar gente por todos os meios. Sobre recado que lhe chega, parte de Extremoz a juntar-se ao Rei. Passa por Aviz, e, depois, por Ponte de Sor. Vai acampar cerca de Abrantes, onde o Rei já estava. Alojada e comida a tropa, corre, seguido de escolta, a avistar-se com D. João I. Volta ao acampamento. No outro dia, vai estanciar inda mais próximo de Abrantes. Nos primeiros dias de Agosto, como o Rei, no conselho tido em Abrantes, hesita em dar batalha aos castelhanos, o Condestável, «vendo que os do conselho tinham intenção de a batalha não ser», parte, uma tarde, em direcção a Tomar, ao encontro do exército invasor. Tendo bivacado junto à ribeira de Abrançalha, recebe ordem do Rei para se aposentar em Tomar, para onde imediatamente segue. É enorme a sua actividade, quer tentando retardar o Rei de Castela, quer tratando, simultaneamente, de obter o maior número de informações sobre a marcha, efectivos, e disposições de toda a ordem, do exército inimigo. Ordenado quanto respeita à batalha, dirigem-se o Condestável e o Rei para Ourém, onde se sabe que as forças inimigas já estão em Leiria. É um sábado. No domingo seguinte, faz o Condestável um reconhecimento, nada obtendo do que hoje chamamos renseignements. Na segunda-feira, parte a hoste para Aljubarrota. Aqui, toma o Condestável completas disposições tácticas que mostra detidamente a D. João I. É Nun`Álvares abordado à última hora por emissários do Rei de Castela, entre os quais seu próprio irmão Diogo Álvares, que lhe vêem propor a deserção. Depois dum rodeio das forças inimigas que procuram ter o vento a favor, o que obriga a modificações no dispositivo português, trava-se a batalha de Aljubarrota. «Ah! portugueses! Pelejar, filhos e senhores, por vosso Rei e por vossa Terra!». Depois de três dias passados no campo de batalha, vai o Condestável em romagem a Santa Maria de Ceiça de Ourém. Voltando a Aljubarrota, segue Nun`Álvares com o Rei, destino de Santarém, passando por Alcobaça.» «E estando El-Rei em Santarém, fez o Condestável [Conde] de Ourém porque ainda não era senão Condestável.» —


— E chega. Não é o que mostramos mais do que suficiente para nos dar uma sensação de rodopio? O ziguezaguear do Condestável merece, de facto, o predicado de vertiginoso. Chegamos a representar-nos imaginativamente o dinamismo tenso que irradia do homem e da hoste, no partir, no chegar, no montar, no desfazer das tendas, no arrancar bruscamente de noite, no desprezar refeições para marchar «a grande aguça», no combater depois de lances de sete léguas... Há uma larga volição, uma capacidade para tudo, sempre desperta. Um ritmo que não cansa. E mais — façanha maior —, é que, de envolta com todo o impulso, a consciência não abranda nunca, e a vontade e a inteligência querem, e conseguem, a permanente ordenação da tropa. «Levava concertadas suas batalhas.» Ou: «Porque ele havia por costume nunca se alojar em lugar, de dia, que não tivesse atalaias. E, se era de noite, guardas e escutas.» Ou: «E Nun`Álvares com sua gente era já em um lugar bem convinhavel para a batalha.» Cuidados militares. Sempre. Por maior que fosse o torvelinho. Há, com efeito, um halo de vontade ciclópica, a cercar toda a figura do Condestável.
As marchas do Condestável? Cadências espantosas, que só têm par nas travessias de Aníbal, ou nas cavalgadas furiosas de Alexandre.
E não esquecer que é sua a consagração do itinerário português além do mar. quando D. João I consulta Nun`Álvares, já retirado do mundo, sobre a empresa de Ceuta, a resposta certifica o Rei no propósito de ir. São as palavras do velho que sabia ser jovem, e as do homem manso que sabia arrebatar-se, que desenham o fiat da expansão. É todo o sentido itinerante de Nuno que entorna sobre a nação portuguesa. As molas que haviam dado a roda viva no torrão continental disparavam agora na direcção do Mar e das terras e gentes do longe. A jornada de Ceuta, o começo do Império, o início de nova e máxima etapa, dentro do grande ritmo? Um projecto que, para o Condestável, só podia vir de Deus, e pelo qual ele tinha de conclamar «ruços além!» Que velho tão jovem! Que lição imperial a da sua velhice! «Não posso eleger morte mais gloriosa, nem sepultura mais honrada do que acabar nesta empreza em beneficio da Fé e Honra de Portugal.»
Itinerário o de Nun`Álvares que, por Deus, pela Pátria e pelo Rei, nos levou até ao fim do mundo.

E agora o fecho, no fim da breve síntese.
Admirável figura itinerante, define Nun`Álvares uma trajectória generosíssima que mercê de progressivo realismo, vai do imenso entusiasmo juvenil, ao abandono de todas as glórias. Num primeiro estádio, vê-se o sonho exaltador das fibras do jovem cavaleiro; num segundo, a luta em que cruamente se empenha o homem por completo descido da literatura à realidade; num terceiro, a mais lúcida consciência, quase diríamos o desencanto — coisa, em verdade, não possível em Nun`Álvares —. São três ciclos em que se nos faculta a vida do herói, e aos quais daríamos respectivamente os nomes de «a fantasia», «o arnês» e «o tabardo»: a juventude extreme que, passando pela mais cruenta e necessária das lutas, conclui na pura atitude confessional. Apontemos, porém, que a unidade é maravilhosa: no fim há respostas moças, como no princípio há reacções próprias da sábia senectude. É sempre assim em determinadas naturezas: a mocidade, sem deixar de ser ela, é precoce madurez, e é juventude o que estua na conduta do homem encanecido. — E permanente, então, em Nun`Álvares, a fusão do guerreiro e do monge. Afirma ele, uma e outra vez, já retirado no Carmo, a virtude batalhadora; como também as primeiras fases da sua vida mostram continuamente a vocação monástica. Se no fim inda pode aparecer o homem de armas, também no princípio, e no meio — coerência admirável —, se acusa o religioso. Sob o arnês palpitou um coração amante de Deus e de Santa Maria, quanto sob a estamenha existiu, sem desfalecer, o excelso servidor do Rei e da Terra.
Caso de equilíbrio perfeito. Paradigma nosso. Caso para ser, juvenil e austeramente, entendido por ti, rapaz-homem de Portugal, nesta hora de luta, e de Graça, que o Senhor nos deu. Sim, é o teu Conde-estável: o chefe, o condutor, o modelo permanente, estável, da juventude portuguesa.
Carlos Eduardo de Soveral.
Lisboa, 15 de Julho de 1954.

Sem comentários:

Enviar um comentário