«É essa altura em que o homem predestinado surge, — em que surge o varão mandado por Deus.
Mais que nos prodígios de que lhe anda constelada a crónica piedosa, mais que na humildade e no ascetismo da sua renúncia admirável, é onde eu vejo o sinal inconfundível da vocação sobrenatural do Condestabre: — é no arremesso incondicionado e aberto com que ele, — um feudal, um homem da Cavalaria, se coloca à frente do populacho das ruas, e da desordem alastrando; raivosa e impotente, consegue tirar o penhor seguro da vitória e da grandeza da pátria de amanhã. Visto de longe, nos frutos abençoados do seu esforço, dificilmente se compreende como o Condestabre é excepcional, quase único. Saído das camadas aristocráticas, houve que vencer-se a si mesmo, lutar contra a família, contra os sentimentos da própria honra, contra o que então constituiria o que hoje chamamos «dever patriótico». Não hesita Nun`Álvares, — embora triunfe por virtude do medievalismo de toda a sua imaculada figura —, em combater contra o medievalismo que estrebucha, agonizante, e que o ascenso do Mestre ao trono matará definitivamente entre nós. Estranha e paradoxal contradição que só nos revela como Nun`Álvares, pelo carácter providencial da sua missão, teria de terminar sobre os altares, oferecendo a Deus, com a sua espada, o lírio imarcessível da sua clara alma de Galaaz! E qual é o ensinamento, qual é a inspiração, que perante a atitude do Condestabre, no momento actual se impõe ao nosso patriotismo alarmado? Antes de mais nada, precisamos de reconhecer no caso de Nun`Álvares que, se Deus prepara e cria os acontecimentos, é sempre à vontade humana que cabe efectivá-los e completá-los. De outro modo, um fatalismo brutal conduziria a marcha da história, negando totalmente a intervenção deliberada das iniciativas do homem, sem o quê a nossa liberdade interior não passaria nunca duma névoa, duma fórmula vã. E se pensarmos um pouco mais em toda a vida magnífica do Condestabre, vir-nos-ia, como bons portugueses, o desejo de escrevermos uma Imitação de S. Frei Nuno, — espécie de breviário quotidiano para a nossa dupla fé católica e lusitanista.
«Raison et bom sens ne suffisent pas!» — observou duma vez Renan, — o céptico, exactamente, quando nos degraus da Acrópole, invocava em Palas-Ateneia a claridade serena da sabedoria antiga. Porque, na verdade, «raison et bom sens ne suffisent pas», é que Nun`Álvares, colocando-se fora do existente, voltando esplendidamente as costas aos Mitos, às Normas, às urnas vazias já de toda a essência e de todo o conteúdo, venceu unicamente pelo poder supremo do Espírito. Rapaz e cabeça dum partido de rapazes com as suas rapaziadas inconcebíveis, acendendo fogos no alto dos montes, tocando trombetas por entre a bruma cerrada, escavacando galhardamente favolas de festim, aprendamos em Nun`Álvares o segredo da nossa crença nacionalista que une ao gesto rebelde, que destrói e purifica, o gesto que tanto nos afila as mãos para o Céu, como no-las enclavinha, justiceiras e frementes, na coronha duma espingarda. E o resto acontecerá, por graça de Deus, desde que, em plena vontade nossa, saibamos querer o que Ele no seu plano eterno já concebeu e já quis!
Interpretada assim a broxadas largas a figura do Condestabre, é imperioso que interpretemos igualmente o significado histórico da batalha de Aljubarrota. Por honra nossa e do sangue que nos queima as artérias, que nunca Aljubarrota seja uma data que divida, um grito que separe! Não hasteemos o pendão do Condestabre, como bandeira de qualquer filarmónica de patrioteirice, — como diria Eça —, onde a Pátria, tornada tema de pura retórica, perca o seu sentido positivo e orgânico e não seja mais que um nome abstracto, destinado a não hostilizar aquilo que é contrário e adverso à sua estrutura inalienável. Entendidos, — não é verdade? Ora, da mesma forma não tomemos Aljubarrota como um simples acto guerreiro, desprendido de toda a sequência e toda a relação com a vida posterior de Portugal.» (pp. 7/8/9/10)
«(...) Que S. Fr. Nuno esteja connosco, como estava em Aljubarrota ao lado do Mestre, como esteve em Granada batendo nas veias de Isabel, como pulsou em Lepanto animando o coração heróico de D. João de Áustria! E o Portugal-Maior regressará à posse dos seus antigos roteiros, para que a energia da raça volte a salvar a beleza do mundo, já meio apagada no longo crepúsculo que sobre ela tragicamente anoitece.» (p. 15/16)
Mais que nos prodígios de que lhe anda constelada a crónica piedosa, mais que na humildade e no ascetismo da sua renúncia admirável, é onde eu vejo o sinal inconfundível da vocação sobrenatural do Condestabre: — é no arremesso incondicionado e aberto com que ele, — um feudal, um homem da Cavalaria, se coloca à frente do populacho das ruas, e da desordem alastrando; raivosa e impotente, consegue tirar o penhor seguro da vitória e da grandeza da pátria de amanhã. Visto de longe, nos frutos abençoados do seu esforço, dificilmente se compreende como o Condestabre é excepcional, quase único. Saído das camadas aristocráticas, houve que vencer-se a si mesmo, lutar contra a família, contra os sentimentos da própria honra, contra o que então constituiria o que hoje chamamos «dever patriótico». Não hesita Nun`Álvares, — embora triunfe por virtude do medievalismo de toda a sua imaculada figura —, em combater contra o medievalismo que estrebucha, agonizante, e que o ascenso do Mestre ao trono matará definitivamente entre nós. Estranha e paradoxal contradição que só nos revela como Nun`Álvares, pelo carácter providencial da sua missão, teria de terminar sobre os altares, oferecendo a Deus, com a sua espada, o lírio imarcessível da sua clara alma de Galaaz! E qual é o ensinamento, qual é a inspiração, que perante a atitude do Condestabre, no momento actual se impõe ao nosso patriotismo alarmado? Antes de mais nada, precisamos de reconhecer no caso de Nun`Álvares que, se Deus prepara e cria os acontecimentos, é sempre à vontade humana que cabe efectivá-los e completá-los. De outro modo, um fatalismo brutal conduziria a marcha da história, negando totalmente a intervenção deliberada das iniciativas do homem, sem o quê a nossa liberdade interior não passaria nunca duma névoa, duma fórmula vã. E se pensarmos um pouco mais em toda a vida magnífica do Condestabre, vir-nos-ia, como bons portugueses, o desejo de escrevermos uma Imitação de S. Frei Nuno, — espécie de breviário quotidiano para a nossa dupla fé católica e lusitanista.
«Raison et bom sens ne suffisent pas!» — observou duma vez Renan, — o céptico, exactamente, quando nos degraus da Acrópole, invocava em Palas-Ateneia a claridade serena da sabedoria antiga. Porque, na verdade, «raison et bom sens ne suffisent pas», é que Nun`Álvares, colocando-se fora do existente, voltando esplendidamente as costas aos Mitos, às Normas, às urnas vazias já de toda a essência e de todo o conteúdo, venceu unicamente pelo poder supremo do Espírito. Rapaz e cabeça dum partido de rapazes com as suas rapaziadas inconcebíveis, acendendo fogos no alto dos montes, tocando trombetas por entre a bruma cerrada, escavacando galhardamente favolas de festim, aprendamos em Nun`Álvares o segredo da nossa crença nacionalista que une ao gesto rebelde, que destrói e purifica, o gesto que tanto nos afila as mãos para o Céu, como no-las enclavinha, justiceiras e frementes, na coronha duma espingarda. E o resto acontecerá, por graça de Deus, desde que, em plena vontade nossa, saibamos querer o que Ele no seu plano eterno já concebeu e já quis!
Interpretada assim a broxadas largas a figura do Condestabre, é imperioso que interpretemos igualmente o significado histórico da batalha de Aljubarrota. Por honra nossa e do sangue que nos queima as artérias, que nunca Aljubarrota seja uma data que divida, um grito que separe! Não hasteemos o pendão do Condestabre, como bandeira de qualquer filarmónica de patrioteirice, — como diria Eça —, onde a Pátria, tornada tema de pura retórica, perca o seu sentido positivo e orgânico e não seja mais que um nome abstracto, destinado a não hostilizar aquilo que é contrário e adverso à sua estrutura inalienável. Entendidos, — não é verdade? Ora, da mesma forma não tomemos Aljubarrota como um simples acto guerreiro, desprendido de toda a sequência e toda a relação com a vida posterior de Portugal.» (pp. 7/8/9/10)
«(...) Que S. Fr. Nuno esteja connosco, como estava em Aljubarrota ao lado do Mestre, como esteve em Granada batendo nas veias de Isabel, como pulsou em Lepanto animando o coração heróico de D. João de Áustria! E o Portugal-Maior regressará à posse dos seus antigos roteiros, para que a energia da raça volte a salvar a beleza do mundo, já meio apagada no longo crepúsculo que sobre ela tragicamente anoitece.» (p. 15/16)
António Sardinha
In «Ao princípio era o Verbo», cap. Meditação de Aljubarrota, Livraria Portugália, Lisboa, 1924, págs. 7/8/9/10 e 15/16.
In «Ao princípio era o Verbo», cap. Meditação de Aljubarrota, Livraria Portugália, Lisboa, 1924, págs. 7/8/9/10 e 15/16.
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