domingo, 26 de abril de 2009

Nun`Álvares por António Sardinha

Nun`Álvares
Foi ontem dia de Nun`Álvares pela comemoração nacional do seu nascimento. Essa figura erguida, uma das maiores da nossa história, é na sua dupla posição de guerreiro e de santo a incarnação perfeita da alma de Portugal. Ninguém como ele teve o gládio para manter a justiça e para defender a terra. Ninguém como ele soube o poder do espírito quando se recolhe em Deus e não confia senão na força superior duma aspiração imortal! Entre a Espada e a Cruz decorreu feliz e gloriosa a existência passada da nossa Pátria. À Espada e à Cruz nós agradeceremos ainda o acto de milagre que nos há-de restituir ao caminho perdido da nossa vocação de povo.
Sobre Nun`Álvares pesa a ignorância imperdoável de quanto ele nos merece como herói representativo da nacionalidade. Oliveira Martins surpreendeu-o em acasos brilhantes do seu brilhantíssimo talento. Mas a compreensão total do grande Condestabre não a soube abranger o historiador, enevoada a sua inteligência pelas piores bastardias filosóficas. Um aspecto há, notável, no livro de Oliveira Martins. É aquele em que o carácter do herói se destaca como formado moralmente pela influência mística da Cavalaria nos seus votos permanentes de sacrifício e de castidade. Oliveira Martins subtraiu-se assim, pela visão do que fora a Idade Média, às ideias dominantes no seu tempo, que consideravam os fenómenos místicos, debaixo da influência intelectual de Charcot, como puras manifestações patológicas. De resto, a Vida de Nun`Álvares vale mais como subsídio para a biografia mental do seu autor do que propriamente como o estudo que Portugal deve ao extraordinário patrono da nossa independência.
Nas Crónicas, — na singeleza gótica das suas páginas, é que nós podemos sentir bem Nun`Álvares em toda a sua plenitude e em todo o alvoroço do seu coração de Cavaleiro e de Monge. É um compromisso de honra, cujo não cumprimento nos cobre a nós de vexame, redimirmos Nun`Álvares das falsificações literárias em que o seu nome se vê corrompido e corrompida a sua acção virtuosa e salvadora. Junqueiro, num panfleto que é desforra atávica da sua ascendência israelita contra a nossa disciplina católica e monárquica, serviu-se do Condestabre como braço de anátema que o ódio político do poeta precisava de armar na indignação retórica dos seus verbalismos truculentos. Depois, numa página vergonhosa, um outro homem de letras tentou reduzir a estatura do Condestabre à craveira deplorável dum impulsivo sem grandeza consciente, quando não dum doido acabado e simples.
Era este precisamente o ponto sobre o qual eu desejaria insistir, não só para lavar a memória de Nun`Álvares do sacrilégio que a pretendeu enxovalhar, mas para demonstrar como cientificamente as afirmações do senhor Júlio Dantas — é ao senhor Júlio Dantas que me refiro, — são erróneas e em todo indignas de quem conviva as coisa elevadas da inteligência.» (pp.165/166/167)
«(...) Enganou-se, pois, o senhor Júlio Dantas, — e enganou-se, não só como escritor mas até como médico, ao assegurar a degenerescência de Nun`Álvares.» (p. 169)
«(...) Os meus votos são para que a Festa a Nun`Álvares se torne um dos objectivos mais ardentes do espírito patriótico. Adoremo-lo nos altares e aclamemo-lo nas praças! Nun`Álvares mostra-nos com a espada terminando na cruz que o patriotismo é uma virtude eminentemente cristã. Como cristãos não consintamos jamais que nos roubem o Condestabre, traindo-o e abastardando-o numa espécie de culto maçónico, tal como o que teima apagar Camões o poeta do renascimento católico, fiel à Igreja e ao sentimento ortodoxo emanado do concílio de Trento.
Juntemos os nossos esforços para que Nun`Álvares tenha o seu dia, — mas o seu dia como Santo e como Herói, não separando nunca as duas faces da sua alma admirável, que só se completam integradas uma na outra. (p. 170)
António Sardinha
In «Na feira dos mitos», cap. Nun`Álvares, 2.ª edição, Edições Gama, 1942, pp. 165/166/167/169/170
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