domingo, 26 de abril de 2009

Nun`Álvares, símbolo da Grei

NUN`ÁLVARES, SÍMBOLO DA GREI

Ex.mo e Rev.mo Senhor, Minhas Senhoras, Meus Senhores:

É a primeira vez que falo diante de um público, tão numeroso, tão selecto, e por isso mesmo com tanto direito a ser exigente.
É a primeira vez que falo; e por uma coincidência que não pôde deixar de me ser sumamente agradável, faço‑o na minha Terra, diante de vimaranenses, no berço da nacionalidade, onde vibra mais quente a beleza do Minho, e onde resplandece bem inteiro o bom sol de Portugal!
Dou à Terra natal as minhas primeiras palavras em público. O que elas valem, pouco me importa. Valem para mim só o que vale a intenção com que as profiro, e essa, creio, é a melhor que em mim pude descobrir.
Vou ler perante vós um pequeno trabalho, em que nada há de novo, despretensioso e humilde, sem rasgos oratórios, nem frases eloquen­tes. Um trabalho cujo assunto é para nós portugueses sempre cheio de interesse, visto que e sempre novo, e sempre antigo,
Se a voz da minha consciência me mostra a insignificância misérrima do meu saber e da minha eloquência perante os mestres, outra voz, não menos forte, esclarecida e tenaz, pede‑me que fale, que me junte e incorpore na plêiade daqueles, que cantaram ou procuraram cantar, pouco ou muito, o esplendor eterno dos heróis do seu país.
Depois eu creio que se o assunto de que vou tratar nada ganhará com o ser exposto por uma pessoa incompetente como eu, anima‑me a ideia de que a beleza intrínseca que possui, jorrará, anulando e encobrindo todas as deficiências da exposição.

Senhores:

Numa homenagem ao Beato Nuno, eu poderia, se as minhas capacidades o atingissem, procurar demonstrar‑vos uma tese sobre a sua vida de Santo ou de herói. Não quero. Prefiro fazer passar, diante de vós, em narrativa singela e simples, os grandes quadros de uma existência privile­giada sobre todos os pontos de vista, uma existência, cuja lembrança, fez, faz e fará vibrar sempre de entusiasmo todos os corações sedentos de heroísmo e de santidade.
E faço‑o, porque tenho para mim, que a melhor maneira de prestar a admiração e culto a um herói e Santo, é procurar os multíplices exem­plos que ele deixou na sua vida.
Em 24 de Julho de 1360, nascia no castelo do Bonjardim, um dos filhos mais novos de D. Frei Álvaro Gonçalves Pereira, e Iria Gonçalves do Carvalhal, pertencentes ambos à nobreza do reino. Nuno, assim chama­ram o pequenino, nascendo numa época de completa dissolução de cos­tumes, começou a aspirar, logo desde o berço, a ser alguma coisa mais do que eram os cavaleiros que tantas vezes via nos pátios do seu castelo, de costumes livres e soltos de fidalgos primitivos. Queria ser como Galaaz, o Virgem, o herói de todos os seus sonhos, de «corpo bem talhado e conte­nente manso» que conhecia através a leitura de feitos audazes dos da Távola Redonda. E contemplando o azul estrelado do céu, cujos segredos lhe fazia entrever Mestre Tomaz, o astrólogo da casa, ou embevendo‑se na lonjura imensa das charnecas solitárias das Beiras, ele idealizava um futuro brilhante de cavaleiro novo.
Portugal passava, então, por uma dessas épocas de convulsão política intensa.
Quando ao morrer Sancho, o bravo, a coroa de Castela passou para Henrique II, o rei português, D. Fernando, como bisneto que era daquele monarca, julgou‑se com direitos à posse desse reino.
Se com efeito, raciocinando assim, mostrava ambições oportunas, não possuía contudo a soma de energia necessária para a consecussão desse fim.
Isto não impediu que a luta se chegasse a travar entre Portugal e Castela, não sendo porém de larga dura em virtude da intervenção de Gregório IX.
Esta intervenção não foi duradoira, visto que em 1372, sabendo Henrique II que D. Fernando com a sua habitual inconstância havia feito pacto com o Duque de Lencastre, filho de Eduardo III de Inglaterra, e pre­tendente ao trono de Espanha por parte de sua esposa, encheu‑se de ira, entrando por Portugal em pé de guerra. A nossa côrte estava ao tempo em Santarém, e foi ali que Nun`Álvares ainda jovem começou os seus labores militares, efectuando, por ordem de seu pai, um reconhecimento sobre as forças do inimigo que avançavam a direito sobre Lisboa. Tão bem prestou contas dessa missão perante D. Fernando e Leonor Teles, que esta encantada com o moço fidalgo, quis, por suas próprias mãos, armá‑lo cavaleiro.
Não havendo ocasionalmente arnês que lhe servisse em virtude da sua idade, trataram de o mandar procurar por toda a parte.
Afinal apareceu um, que servira ao Mestre de Aviz, irmão do rei, e — quem tal diria? —, o arnês de investidura de Nuno pertencia ao que ele mais tarde devia investir do comando supremo da nação, com o ardor do seu espírito e o esforço indómito do seu braço.
Em 1376 propunha‑lhe seu pai o casamento com Dona Leonor Alvim. Mas Nuno tinha apenas 16 anos, e não ia portanto longe o tempo em que no seu cérebro se haviam fixado tão bem as histórias de Galaaz, o Virgem, rezando a crónica que ao ser‑lhe feita essa proposta, Nun`Álvares respondera «que era cousa de que elle trazia a vontade muyto afastada». Afinal cedeu às intâncias dos pais, e de Álvaro Pereira e Gil de Carvalho seus parentes, pois que estes, «afficarom‑no tanto ataa que elle cõsintio», realizando‑se o casamento em Agosto do mesmo ano. Nuno foi um exem­plar chefe de família, dedicando‑lhe todo o tempo que a guerra lhe deixava, e estremecendo até à morte, a esposa, os filhos e os netos.
Foi por estes tempos que começou a ser mais notada na cena política portuguesa a fascinadora aventureira que se chamou Leonor Teles, e que tão grande influência devia ter nos destinos duma época da nossa história.
Como D. Fernando, que se dizia casado com ela, se bem que se duvide da legitimidade de tal casamento, começasse a tratar com o rei de Castela João I a revisão de tratados e o casamento de sua filha a infanta Dona Beatriz com o filho do mesmo João I, Henrique, Leonor Teles sobressaltou‑se.
Efectivamente, D. Fernando débil e fraco como estava não duraria muito, e Portugal com aquele consórcio viria a incorporar‑se no reino vizinho, perdendo assim ela todo o prestígio de que queria gozar como rainha e Senhora.
Ora havia meio de o evitar, fazendo estalar de novo a guerra entre Portugal e Espanha. Para o conseguir, Leonor Teles recorreu ao Conde Andeiro, galego hábil mas sem escrúpulos, que entrara no reino em 1369.
A aliança de Portugal com a Inglaterra, base e condição dessa guerra, foi combinada e tratada. O rei, alheio a tudo, quando o soube porque era pusilânime e nada percebera ante a mobilidade de vistas do prestidigitador Andeiro que lhe apresentara planos maravilhosos, aceitou‑a. Seduzia‑o talvez a ideia de vingar o incêndio de Lisboa em 1373.
Enfim a luta começou, e começou pelo desastre de Saltes, em que a armada naval portuguesa ficou completamente destroçada.
Nuno, ardia já então nos ímpetos da sua natureza, que a situação tornara belicosa. Era um homem de acção, e imaginava, no fogo dos seus verdes anos, vencer sozinho com os que privava, como noutros tempos faziam os cavaleiros andantes, todos os inimigos da Pátria, praticando uma façanha heróica; e assim, lembrou‑se de mandar um repto a João de Ansu­res, cavaleiro esforçado e filho querido do Mestre de Santiago, para se baterem, dez contra dez, a ver se ganharia o entusiasmo viril dos portu­gueses, ou o esforço indómito dos espanhóis.
Nun`Álvares chegou mesmo a escolher os nove que o deviam acompanhar ao torneio. Quando, porém, se soube tudo isto, porque o considera­vam uma criança, proibiram‑lhe que saísse de Lisboa.
Para ele foi a primeira desilusão. Não o queriam deixar combater. Não serviria então para nada? E desgostoso, deixou‑se ficar na capital, numa inacção que não podia suportar.
Como um dia chegasse lá a notícia de que alguns castelhanos da es­quadra que então bloqueava a cidade, costumavam sair dos navios para de noite. roubar pacificamente uvas e outras frutas nos arrabaldes, Nuno, e seu cunhado Pedro Afonso do Casal, resolveram dar‑lhes uma ensina­dela mestra. Uma noite, partiram os dois com uns vinte e quatro de cavalo e trinta bestei­ros e peões.
Quando os sitiantes apareceram para se entregarem à costumada tarefa, caíram sobre eles como uma tromba, obrigando‑os a embarcar à pressa. Quando já se retiravam satisfeitos da vitória, um troço forte de espanhóis embargou‑lhes a passagem. Nuno sorriu. Era a batalha a valer. Mas, os restantes portugueses, como vissem que o inimigo era em grande número, e porque decerto eram de índole menos guerreira do que Nun`Álvares, voltaram costas ao perigo, fugindo desesperadamente. Ele ficou im­pávido, sentindo‑se só.
Os castelhanos, precipitaram‑se numa avalanche de ferro. Mas resis­tiu. Abrira até já uma clareira no meio dos inimigos, quando a lança lhe voou em estilhas e o cavalo começou a fraquejar.
Eram duzentos homens contra um, e cairia inevitavelmente após tanta coragem demonstrada, se os companheiros que de longe observavam a heroicidade e o valor do nóvel cavaleiro, não lhe acudissem, resgatando assim a cobardia que tinham mostrado.
Foi pelo tempo deste episódio que chegaram as tropas inglesas e se falava em que o exército anglo‑luso ia dar batalha real aos castelhanos. Nuno como estivesse encerrado a dentro dos muros de Lisboa sob a depen­dência de seu irmão mais velho, ardendo em desejos de se bater e morrer se necessário fosse pela sagrada causa da Pátria, pediu‑lhe que o deixasse partir, para combater ao lado do rei.
O irmão não se comoveu e fazendo‑lhe ver que era ainda infante para batalhas duras, ordenou‑lhe que ficasse. Nun`Álvares então, não se conteve, e escaramuçando com os guardas da porta de S. Vicente que tinham ordens para não o deixar sair, fugiu, indo ter com o seu rei, que o acolheu de braços abertos. Contudo mais uma vez se logrou a sua espe­rança, pois não só não se deu a batalha, mas, pelo contrário, de novo se assinaram pazes, combinando‑se o casamento da infanta dona Beatriz, primeiro com o segundo filho do rei de Castela, e, pouco depois, por morte da esposa deste, com o próprio D. João I. Quando a infanta lhe foi entregue por Leonor Teles, em Elvas, onde se realizou então um sumptuo­síssimo banquete sob tendas riquíssimas, Nuno que assistia, para protes­tar de alguma forma contra as pazes e o casamento, que entregavam Portugal a Castela, entrou pela tenda real, e agarrando‑se de ambas as mãos às duas enormes mesas laterais dos convidados, com um gesto brusco lançou‑as ao chão. Foi um borborinho medonho de vozes, baixela caída e acepipes espalhados. Leonor Teles que assistia ao banquete, sentada ao lado do noivo, raivou com o desconcerto. Mas o rei de Castela que quiçá conhecia melhor a psicologia humana, disse‑lhe baixinho: «Por Deus, Senhora; homem que tal fez tem coração para mais.» E teve. Mal imagi­nava ele que devia experimentá‑lo em Aljubarrota...
Nun`Álvares retirara‑se para o Minho. Tudo isto não era o que ele tinha sonhado. Via agora que nem todos amavam e queriam a indepen­dência nacional como ele, e preferiam deixar‑se levar na corrente dos factos, enquanto estes não melindrassem o bem estar próprio. Sentia que se desmoronavam um a um, pouco a pouco, todos os seus projectos do futuro...
Passou‑se o tempo. D. Fernando morrera no Palácio do Limoeiro, em 1393, e o povo tinha aclamado seu irmão o mestre de Aviz, como Regedor e defensor do reino, aclamação ratificada em seguida pela câmara do conselho e senado de Lisboa. Estava eminente uma nova guerra.
Nun`Álvares sabendo que o conde de Mayorca, general em chefe do exército inimigo que devia invadir Portugal, já tinha mandado raptar o Mestre, reuniu à pressa os seus homens, e seguiu logo como fronteiro para o Alentejo, comandando umas duzentas lanças. Tinha, então, 24 anos. Em Évora, de passagem, mandou deitar pregão para recrutamento. Apareceram só trinta voluntários. Uma miséria. Era uma nova decepção. O povo que idealizara, sempre pronto a defender‑se e a lutar pelas grandes causas, negava‑se a entrar na luta pelos seus próprios interesses. Seguiu contudo a sua rota, pois quanto menos vontade via da parte dos homens, maior fé lhe vinha pela parte de Deus.
Era ela quem o guiava. Sentia‑se predestinado para grandes vitó­rias ... Pelo caminho foi‑se‑lhe juntando gente, e levava já um milhar de homens entre peonagem e lanças.
Em Estremoz passou revista a esse pequeno exército. Dos trezentos de cavalo, só cento e oitenta tinham bacinete. O resto, era de uma heterogeneidade deso­lante em armas e indumentária. Mas havia de vencer! Queria‑o, via‑o já! E a pequena hoste bisonha avançava a custo, porque havia medo naqueles que a compunham. Duas vezes quiseram retrogradar para fugir ao combate, e duas vezes a eloquência chá e o braço férreo e disciplinadora de Nuno os detiveram.
Então começaram a compreendê‑lo melhor. Amavam‑no, vislumbrando talvez nas mentes incultas e rudes que ele era um predestinado ...
A uma légua de Fronteira, para o sul, contra Estremoz, apare­ceram os inimigos. Nuno viu a batalha eminente. Mandou formar aos seus homens o quadrado, esse quadrado a que ficou devendo as suas mais belas vitórias, e que segundo Oliveira Martins talvez tivesse aprendido com os guerreiros do duque de Cambridge. Colocou‑se no centro dele, e alçado sobre os estribos da mula que montava, falou aos portugueses.
«Amigos, disse: — aqui estamos, para combater e morrer por nossos haveres, por nossos pais, por nossos filhos e pela nossa terra.
Encomendai‑vos a Deus, à Virgem, e porfiai.
Lutaremos o tempo que for preciso. A pátria muito espera de nós, pois nos mandou para servir o Mestre é ganhar honra.» — Em seguida des­montou, e descobrindo‑se, ajoelhou a rezar. Estava ainda em jejum.
Começava a ouvir‑se melhor o tropear dos cavalos dos inimigos. Não vinham em formatura. Para quê? Para destroçar um punhado de gente medrosa comandado por um fedelho? E carregaram em desordem.
Enganavam‑se. Ali estava mais do que isso. Vibrava na hoste portuguesa, toda a grande alma do seu capitão. Era a alma de uma pátria que se defendia, e por isso; a luta foi homérica.
E quando caiu a noite sobre a charneca triste, a lua iluminou com os seus reflexos de prata o chão juncado de cadáveres de soldados caste­lhanos, e ao longe, esfumando‑se nas lonjuras da campina, os que restavam do exército derrotado, que fugiam. Nessa tarde tinham caído ali para sempre alguns grandes de Espanha. Lá ficaram irmanados pela mesma morte entre os soldados, o mestre de Alcântara e o fronteiro‑mór de Andaluzia.
Os que fugiam levavam em andas, feridos, o próprio irmão de Nuno, o novo prior do Hospital que se passara ao inimigo, o mestre de Santiago, e o almirante Tovar.
A batalha foi a 6 de Abril. No dia 8, o capitão vencedor, partiu em romaria a agradecer a vitória a Nossa Senhora de Assumar.
Entretanto o restante exército castelhano cercava Lisboa, e o Mestre começara de novo a entabular relações com a Inglaterra.
Nun`Álvares desejava ardentemente compartilhar com os sitiados das agruras do cerco. Mas a esquadra que o devia conduzir a Lisboa, levantou ferro do Porto, antes mesmo que ele chegasse a Coimbra. Diri­giu‑se pois em marchas forçadas a Palmela que queria tomar, visto já pertencer aos espanhóis.
Deu uma corrida às tropas da guarnição que andavam fora, mas que se encerraram logo no castelo.
E quando João I de Castela chamou à tenda real, em Santos, onde estava, a Pero Rodrigues Sarmiento, para lhe estranhar que tendo ele o comando daquele lugar não estivesse no seu posto como devia, ele respondeu‑lhe: é que... «Senhor. Fareja‑se que seja Nun`Álvares...»
«Boa resposta», disse o rei. «Nun`Álvares! Um escudeiro de cinco rocins!»
«Não está mau escudeiro», retorquiu‑lhe o Sarmiento já exasperado. «Agradecei, senhor, a Deus e ao rio que está entre vós e ele, porque senão aqui mesmo vos viria buscar!» O rei calou‑se. No íntimo ele pensava que com efeito Nuno era já mais para temer. Aquele ano tinha‑lhe dado, como diz Oliveira Martins, a experiência dos homens, e uma supervisão dos factos, que o fazia único. E por isso mesmo, ele cada vez se julgava mais obrigado a cumprir o que chamava: o seu dever. Queria libertar a sua terra do jugo opressor que a ameaçava.
Tinha fé nos seus soldados a quem tratava como filhos, e que lhe dedicavam uma dedicação sem limites. Contava com eles. E talvez não contasse, mas era um facto, com que a sua fama se espalhara tanto entre amigos e inimigos, que para estes começava já a ser a imagem do capitão português uma obsessão inquietante, e um grande agente desmoralizador. Conta‑se em abono desta asserção, que certo dia que fizera alto com a sua gente algures, apareceram no acampamento, sem armas nem salvo‑conductos, dez escudeiros espanhóis pedindo para ser conduzidos à presença de D. Nuno. Levados perante ele, perguntou‑lhes o futuro condestável, de onde haviam partido. — De Castela, disseram, a pé! — E ao que vinham, de tão longe, interrogou de novo?
Os escudeiros entreolharam‑se aflitos, não sabendo se sim ou não deveriam dizer o que os trazia ali. Por fim um, o mais afoito, adiantou‑se dizendo: Senhor, nós... nós vínhamos só para vos ver!
Realmente era bem digno de ser admirado e visto, abençoado como era por todos, espalhando tanto o terror nos campos de batalha, como as flores ingénuas e simples das suas virtudes, pelos lugares onde passava o passo férreo da sua hoste heróica.
Quem sabe se Deus se inclinaria mais para Portugal, em atenção aos méritos do virtuoso Nun`Álvares? Era voz corrente que Deus estava do lado dos portugueses, e citava‑se o facto da peste que começara a gras­sar terrivelmente no arraial dos sitiantes de Lisboa.
Todos os dias morria um número imenso de homens de armas, e iam já caindo os cavaleiros. Um dia a peste implacavelmente atacou o rei de Castela. De pronto se desfez o cerco, e todo o exército partiu, levando os seus mortos e os seus doentes.
Nun`Álvares quis aproveitar esse ensejo. Agora é que era cair sobre eles, desbaratá‑los, reduzi‑los a nada! Mas a resposta do Mestre sobre isto tardava à impaciência de Nuno, tanto, que resolveu ele próprio ir‑lhe falar.
Apesar de se ter demorado pouco em Lisboa, quando voltou não era possível o ataque às tropas inimigas, que iam já muito retiradas.
Em 28 de Outubro, também a frota levantou ferro, fazendo‑se ao largo, e Lisboa pôde enfim ter sossego, após tão longas e tão duras privações.
Nuno, esse, é que não sossegava, incapaz, como era, de estar ocioso. Tomou Portel que os castelhanos ocupavam, e pouco depois entrava tam­bém na discussão rija que se travou nas cortes de Coimbra ao ser eleito rei, o regedor do reino D. João. A ele, e à eloquência elegante e provativa de João das Regras, o antigo discípulo do célebre Bartolo de Bolonha, deveu o Mestre de Aviz o sentar‑se no trono de Portugal.
Assim o compreendeu o novo monarca, que, no dia seguinte ao da aclamação, nomeava D. Nuno condestável do reino, mordorno‑mór e João das Regras chanceler da coroa.
Para mostrar que merecia o título, Nun`Alvares fez uma marcha heróica pelo Minho acima. Queria ir em romagem a Santiago de Compostela, e pelo caminho tomaria as terras que pudesse. Darque rendeu‑se‑lhe. Viana foi levada de assalto. Cerveira, Caminha e Monção entregaram‑se. Como recebesse no caminho recado do rei, desistiu do seu primitivo propósito e marchou sobre Braga que entrou, vindo ter com D. João aqui a Guimarães, cidade que não tendo recebido, como esperava, socorros de Castela, acabou também por entregar‑se aos dois.
Sabendo‑se que o inimigo de novo atravessara a fronteira por Badajoz, o Condestável resolveu imediatamente dar‑lhe batalha decisiva. Quiseram alguns demovê‑lo desse seu propósito, pois sabia‑se já com que enorme poder vinham os castelhanos; mas ele, porfiando na sua, partiu. O rei mandou‑lhe dois correios para que tornasse atrás. Os correios voltaram com a reposta. Nun`Álvares encarregara‑os de participar a D. João I que não era homem de muitos conselhos, e já que tinha determinado embargar o passo ao rei de Castela não mudaria de parecer. E que mais lhe pedia fosse ter com ele.
D. João perante uma tal pertinácia cedeu, seguindo para Tomar onde se encontrou com o seu Condestável, e onde ambos passaram alarde às tropas. Não excedia dez mil o número dos homens, sendo apenas dois terços combatentes. Os correios portugueses que chegavam do campo inimigo, onde
tinham ido para observar as suas forças, traziam más noticias. O número dos adversários era formidável. De Tomar puseram‑se os nossos em marcha para Ourém, e dali para Atouguia das Cabras, onde acamparam.
No entanto ia avançando o enorme exército castelhano, que era realmente uma soberba manifestação do poderio das Espanhas. O número dos seus combatentes orçava por uns vinte mil, e com serventes, ajudantes, tratadores de gado, guias, etc., perfazia um total de mais de trinta e duas mil pessoas. No couce desse exército, seguiam ainda, um comboio de setecentas carretas, oito mil cabeças de gado e dezasseis trons, peças de artilharia rudimentares, mas desconhecidas ainda para os nossos.
De Porto de Mós, onde já se tinham passado os portugueses, é que Nun`Álvares partiu a explorar terreno, encontrando após várias buscas o ponto que queria para colocar os seus homens. Segundo Oliveira Martins, é um baluarte natural a uns setenta metros sobre a várzea, e entrando por ela em esporão. Fica a poente dos montes Albardos, e assenta em terreno levemente ondulado, que se inclina desde que sai dos contrafortes frontei­ros a Leiria, até ao lugar de Aljubarrota. O contraforte cerca‑se dos dois lados por riachos, afluentes do Lena, e na parte de trás por barrancos naturais do terreno.
Ali dispôs D. Nuno a sua gente. Era uma posição quase inexpu­gnável. Na vanguarda do quadrado, que mandara formar e que olhava para Leiria donde se supunha viriam os inimigos, colocara os seus homens, uns setecentos, segundo Fernando Dinis. Queria ser o primeiro a combater. Na ala esquerda ficaram os namorados, a fina‑flor da juventude fidalga portuguesa, corações generosos, almas ardentes de patriotismo e sedentas de luta, comandados por Mem Rodrigues e Ruy Mendes de Vasconcelos. Na direita misturavam‑se portugueses e auxiliares estrangeiros.
Umas duzentas lanças, novecentos homens. O rei, com um forte contingente, fechava o quadrado. Havia‑se feito também um curral para gado e bagagens.
Quando o exército português tinha tomado as suas posições, e tudo estava disposto, começou a aparecer na várzea imensa uma mole viva que .avançava lentamente, como nódoa escura a alastrar‑se no verde esmeral­dino, da vegetação rasteira.
Pouco a pouco ia‑se aproximando. Os portugueses podiam já distinguir os mais avançados desse exército, montando em ginetes andalu­zes, que caracolavam ao sol. Parecia que vinham a uma festa. A luz brilhante do astro diurno cintilava em revérberos irisados no aço brunido das armaduras dos guerreiros do Mestre de Alcântara, e as espadas e lanças, aos milhares, atiravam aos ares reflexos argênteos que se perdiam no azul....
Atrás de tudo, seguia o rei. Mas estava atacado pelas febres, e vinha débil, no imenso poder que o rodeava. Não havia nas hostes castelhanas o comando uno, viril e forte que era suficiente para as tornar invencíveis. Pelo contrário, citavam‑se cisões entre os comandantes e entre os cavaleiros. Faltava mais ainda, a alma comum, o sentimento unânime de quem defende o que é seu, contra um injusto agressor, sentimento esse que enchia os corações da pequena hoste portuguesa. Nela tudo vivia em volta de um centro que a comandava, que sentia por ela e vivia para ela. Era o Con­destável.
Os castelhanos compreenderam logo, de relance, que a posição portuguesa era inatacável pelo lado donde vinham. Obliquaram pois, manobrando para os colher pela rectaguarda, onde o terreno era mais viável. Imediatamente, porém, Nun`Álvares apreendeu a manobra. Silenciosa e rapidamente inverteu a posição do quadrado, e a vanguarda ficou de novo em frente ao inimigo. Agora, havia menos vantagens para os nossos, com os últimos raios de sol a bater‑lhes nos olhos, e que além das ondulações naturais só eram ajudados pela estreiteza do terreno, que não permitia um ataque cerrado. O sol declinava e ainda no arraial castelhano se discutia, se convinha ou não dar a batalha nesse dia. De súbito, porém, as hesitações desapareceram. Uma parte da cavalaria inimiga que se impacientava com a demora, carregou sobre a vanguarda portuguesa, que resistiu de início. Mas sobre ela começaram a precipitar‑se torrentes de homens de armas, e, fraca como era, entrou de encurvar‑se no meio, para o centro do quadrado. Nun`Álvares viu‑o a tempo. E, imediatamente, dando ordens, levou as duas alas laterais de reforço que não combatiam mercê da posição, a reforçar a vanguarda, colocando‑as por detrás dela. Os historiadores de ambas as partes dizem que a luta foi de morte. Começava a correr o sangue, muito sangue.
Os ânimos esquentaram‑se, e o rei invasor, não notando sequer que a derrota começava ligeiramente a batê‑lo, mandou que a sua segunda linha avançasse. Num dado momento, Nuno que a tudo atendia e a todos pres­tava a ajuda forte da sua espada e o entusiasmo embriante das suas palavras, notou que a pequena hoste que ficara a defender as bagagens começava a ceder terreno, ante um ataque inopinado e impetuoso do Mestre de Alcântara. Correu lá e gritou‑lhe mais forte, mais entusiástico, mais decisivo, entrando pela hoste inimiga a golpes de espada. Foi o ter­ror. A sua força parecia ter‑se centuplicado. O Mestre foi batido. As tro­pas restantes começavam a ser dizimadas pouco a pouco. Diz a crónica que os espanhóis que morriam eram como «som os feixes no restolho do bôo trigo e bem basto». A hesitação que houvera a princípio tornou‑se em retirada e depois em fuga.
— Já fogem, já fogem!, — berravam os nossos entusiasmados, quentes da refrega, chacinando sempre; e corriam atrás dos castelhanos que, caindo, chocavam na precipitação da retirada, com o resto do seu exército que abalava. O pendão castelhano jazia por terra, e o rei fugia a cavalo a caminho de Santarém, ardendo em febre e em vergonha, arran­cando as barbas e, o cabelo. Começara a debandada. O Condestável conser­vou‑se na sua posição que mandou reforçar, reorganizando os combatentes. No dia seguinte, como não tivesse havido novidade, foi sozinho, a pé, como costumava depois de cada batalha, em romaria à Virgem de Ourem. Era o dia de Nossa Senhora de Agosto, e estava firmemente convencido' que ela influíra poderosamente no resultado da batalha da véspera.
Com a vitória de Aljubarrota a guerra não estava terminada. Enquanto D. João, em cumprimento de um voto que fizera, partia por Coimbra e Porto para aqui, para Guimarães, onde o devia à Senhora da Oliveira, o condestável marchava de Évora para Estremoz, e daí, com mil e oitocentos homens de lança, duzentos ginetes e cinco mil besteiros e peões, para a Espanha, atravessando o Guadiana junto a Badajoz.
Ia de avanço sempre, sem encontrar resistência, mas ansiando já por uma batalha, para que a sua gente não se tornasse mole à míngua de combates. E no entanto a hoste ia sendo seguida, passo a passo, desde a raia, por Martim Anes, o Barbuda, novo mestre de Alcântara, que os espreitava de cumeada em cumeada.
Castela começava a ser da hoste portuguesa. Mas um dia aparece um arauto. Sobraçava um enorme molho de varas, e vinha em nome do Barbuda e dos Senhores de Castela, desafiar o condestável. E ia‑os nomean­do um a um, diante de Nun`Álvares, ao passar‑lhe para a mão as varas que representavam espadas. D. Nuno ouviu‑o placidamente até ao fim. Depois mandou‑lhe dar cem dobras, e que dissesse aos Senhores cavaleiros que o reptavam, lhes agradecia as varas que mandavam, e em breve contava podê‑los zurzir com elas. Sem se importar mais com o facto, avançou para diante, parando só a juzante do Matachel, afluente à margem direita do Guadiana, entre Medellin e Mérida. Os espanhóis não o atacaram logo, esperando reforços que, com efeito, chegavam de Sevilha, Córdova, Jaen, Aragão e Mancha. Depois começaram a morder o couce do exército português, levando alguns bois.
Nun`Álvares, em vista disso, mandou formar em quadrado a sua gente e pô‑la em movimento para passar o Guadiana a vau. Pouco depois a hoste, sempre em formatura, começava a subir a encosta fronteiriça, aos socalcos, que a vegetação vestia. As eminências mais vizinhas estavam cobertas de inimigos. Apesar disso, os homens de D. Nuno avançavam sempre, como que impelidos por uma força imensa, misto de coragem e de fé naquele que os guiava. Um a um os socalcos iam sendo tomados. Em breve, porém, a retaguarda começou a ser vivamente atacada pelos castelhanos que tinham também já atravessado o rio.
Foi o início do verdadeiro combate. Subitamente, quando ele recrudescia de intensidade, Nun`Álvares desapareceu. Ao saber‑se isto o desa­lento invadiu os nossos. Não se feria com tanto ânimo agora, e a coragem principiava a desaparecer. A hoste parou mesmo de avançar, e os comandantes, inquietos, procuravam Nuno por toda a parte. Afinal o cavaleiro Rui Gonçalves encontrou‑o de mãos postas e olhos no céu, em êxtase, a rezar entre duas penhas. Parecia não o perturbar o fragor da batalha que se travava a alguns passos dele. E quando o fidalgo o interpelou fazendo­‑lhe notar que os portugueses seriam derrotados se não voltasse à luta, ele respondeu‑lhe com uma tranquilidade que sentia: «amigo, ainda não é tempo.» E continuou a rezar, fazendo voto à Virgem de lhe levantar um templo, se vencesse. Pouco depois ergueu‑se. Luzia‑lhe nos olhos um fogo que nunca lhe tinham visto, e em que se poderia ler a fortaleza que lhe comunicara a oração.
Montou a cavalo, e arrastou num ímpeto o seu alferes, apontando aos nossos a bandeira do mestre de Santiago que tremulava num alto. Ao vê‑lo assim, perpassou pela hoste um frémito de quase vitória. O inimigo não pôde resistir a essa avalanche humana que Nun`Alvares levava adiante de si, ardente de fé e de entusiasmo. Galopavam já em fuga pela campina. Acabava de vencer‑se a batalha de Valverde.
Dezanove dias depois voltavam os portugueses a Elvas, carregados de despojos ricos. O rei ratificou e ampliou ao seu Condestável a doação do condado de Barcelos, e, pouco depois, deu‑lhe a vila de Chaves.
A 25 de Julho de 1386 chegou o Duque de Lencastre à Corunha, encontrando‑se com D. João I, em 1 e 2 de Novembro, na Ponte do Muro. Ali se tratou a aliança anglo-lusa, e o casamento do rei com D. Filipa de Lencastre, combinando‑se também a invasão de Espanha. Infelizmente essa invasão não deu os resultados que se esperavam, e após algumas escaramuças, em que só se destacou a batalha de Águeda, o exército aliado voltou para Portugal, embarcando o Duque no Porto com rumo a Bayona. Em 1393 o rei João de Castela morria da queda de um cavalo, e a regencia que lhe sucedeu negociou tréguas por onze anos.
Durante esse espaço de tempo Nun`Álvares foi uma das grandes figuras da reconstrução e ressurgimento militar da sociedade nova. Lançou as bases da criação de um exercito efectivo de doze a quinze mil homens, e espalhou pelo reino arsenais de armamento devidamente apetrechados. E mais: faria talvez, se a política interna do chanceler João das Regras não lhe quisesse negar o direito de distribuir por alguns dos seus antigos companheiros de amas, o que lhe tinham dado em paga do seu valor. Melindrado com isto, voltou ao Alentejo, juntou a sua gente, e passando a Extremós dispunha-se a expatriar‑se.
O rei assustou‑se. Que seria de Portugal sem ele? Não esteve, porém, inquieto por muito tempo. Apenas chegaram novas de que o país ia ser de novo invadido, o condestável esqueceu tudo, para, num gesto de grandioso civismo, se lembrar unicamente de que era português.
E quando D. João convocou, para a nova guerra, todos os seus Fidalgos, de início, só um apareceu. Foi Nun`Álvares. Nele, o amor pátrio é superior ao ressentimento. Obedecendo ao monarca, assolou com os seus homens, numa correria de oito dias, a Espanha até Cáceres.
Na primavera, desse ano, ele que nunca fora enfermo, adoeceu esgotado por aquela ida de esforço continuado.
Não terá, contudo, ainda o fim. Um dia, que se sentiu melhor, meteu­-se a cortar mato numa charneca do Alentejo, e como visse que ainda possuía a força antiga, correu com oitocentos homens, de armas a invadir Castela. Mas era já tal o terror que o seu nome infundia ao inimigo, que apenas teve de sustentar pequenas escaramuças.
Estabeleceram‑se de novo tréguas. Em 1400, como D. João julgasse que elas não eram estáveis ainda, resolveu forçar a Espanha a uma paz mais duradoura e firme, o que aliás se não chegou a realizar pois que enviuvando D. Catarina, irmã da rainha portuguesa e então soberana de Castela, veio por sua vontade a um acordo que terminou como tratado de 1411. A guerra acabava de vez. Nun`Álvares compreendeu que com ela acabava também uma das suas missões na terra. Sentia cada vez mais, após tantos anos de luta, a necessidade imperiosa de se isolar. Só dois laços o prendiam ao mundo. A mãe e a filha.
Mas aquela preparava-se de há muito para a morte, e esta casou‑a com ele com D. Afonso, filho natural do rei, legitimado em 1439. Pensou então tem cumprir o voto de Valverde. Escolheu lugar. Foi o monte da Pedreira, em Lisboa, sobranceiro ao Rossio, avançando por, ele, e mais alto do que se costumava indicar então, para construir igrejas e mosteiros.
Duas vezes se começaram a erguer os muros desse templo, e duas vezes, também, eles ruíram por terra. Mas Nun`Álvares possuía ainda a ,persistência forte e sã que, mostrara outrora, e recomeçou.
A planta era a de um edifício sóbrio e maciço, forte, como era forte a alma heróica do seu fundador. Hoje restam‑nos dele apenas restos calcinados que o fogo logo consumiu e as labaredas lamberam depois de terem ruído com o terremoto de 1755. Ficaram só as arcarias solitárias e tristes, erguendo a Deus a oração da cidade, mergulhando, no azul do céu, com uma ânsia insatisfeita de mais alto!
Terminada que foi a construção, passaram‑se ainda dez anos antes que D. Nuno professasse; mas cada vez se cavava mais, entre ele e o mundo, um abismo que devia terminar no claustro. Finalmente, depois de ter enterrado a filha e colaborado ainda na, conquista de Ceuta, onde não quis ficar como comandante de África, professou a 15 de Agosto de 1423, na Ordem do Carmo a quem doará o seu convento. Nos anos que decor­reram até 1431, a vida de Frei Nuno de Santa Maria repartiu‑se pela oração contemplativa e pelas obras de caridade, mostrando‑se sempre de uma humildade excelsa. Nos últimos anos, sobretudo, os mendigos foram o seu amor, e era de ver o antigo Condestável do reino, mordomo‑mór, conde de Ourém, Barcelos e Arraiolos, senhor de mais de metade de Portugal, despido de tudo, ficando apenas com o seu hábito humilde de oblato, que o tempo crivara de buracos, mais roto é mais velho do que, os farrapos humildes dos pobres a quem servia de pai. Essa grande alma era ainda bem, debaixo de um corpo decrépito e exangue pelas mortifi­cações enormes que fazia, a mesma que levara à vitória as hostes do seu rei e da sua Pátria. Conservava mesmo a vontade férrea de outros tempos, e de tal forma, que às vezes ele dava ao corpo simulacros de força física que aquele já não tinha,
Um dia que em Lisboa se preparavam todos para ir combater o bey de Tunis e o rei de Granada que se tinham unido aos marroquinos para a reconquista de Ceuta, ele soube‑o e quis ir também, a África, bater‑se. Como os companheiros de religião lhe fizessem notar que já não possuía forças para isso, Frei Nuno tomou nas mãos uma lança, ergueu‑se muito direito, bem fincado nos calcanhares e de braço firme, com um esforço violento, arremessou‑a aos ares, dizendo: «Em África a meterei se necessário for.» Passou‑se esta cena no eirado do convento, sobranceiro ao Rossio. Diz Santana, na crónica dos carmelitas, que a lança zunindo pelo espaço, se fora cravar rijamente numa porta do outro lado da praça.
Eram os últimos reflexos de uma vida que se apagava docemente. Começou a enlanguescer, e a 1 de Novembro de 1431. Com 73 anos de idade, quando já doente um frade lhe rezava à cabeceira a paixão do Senhor e chegara ao Ecee Filius Tuus, Nuno, num arroubo magnifico, expirava nos braços do rei e dos infantes que soluçavam.
Assim morreu o mais belo cavaleiro e Santo que jamais geraram as terras de Portugal. Como cavaleiro forte que fora, nunca ninguém o vira trepidar perante o inimigo. A sua valentia nada tinha de inverosímil nem de patológico. Vinha espontaneamente quando era provocada, diz Mendes dos Remédios. Por isso D. João pôde com verdade chamar‑lhe um dia ao abraça‑lo, «o primeiro homem de armas que jamais havia visto». Como crente, a sua fé guiou‑O em todos os passos da vida, límpida, luminosa e simples.
Acostumara‑se novo a invocar à Virgem, sempre. E sempre também ela o socorreu com o seu auxílio. Nun`Álvares foi verdadeiramente Santo, como fora verdadeiramente herói. Assim o julgou o Sumo Pontífice ao Beatificá‑lo, ratificando o culto que o nosso povo lhe vinha prestando desde a sua morte.
Eis senhores, um pálido resumo, do que foi a sua vida, que pode e deve ser‑nos de exemplo. Terminando, eu queria ter o entusiasmo vibrante de D. Nuno para Vos gritar; Portugueses! Se o sois do coração, amai com toda a vossa alma, com toda a pujança das vossas faculdades, colocando abaixo de Deus e acima de tudo, como o fez Nun`Álvares, o nosso querido Portugal! Se sois crentes, eu vos incito a que tenhais fé viva como esse pioneiro grande da nossa terra, lembrando‑vos de que Portugal só foi grande, quando Deus e só Deus guiava através um mundo que foi nosso, os seus passos heróicos. Vós que por serdes portugueses possuís ao máximo esse entusiasmo nativo pela terra que vos gerou, lembrai‑vos que descendeis daquela gente antiga que soube viver combatendo e orando, e que vos com­pete. trabalhar, lutar e alcançar para a Pátria, a era nova, esplendorosa e feliz.
Lembrai‑vos, não para que vos quedeis num «dulce far niente» cobarde, mas para que tenhais mais esperanças no futuro, de que, uma nação que se orgulha de possuir, como a nossa, uma galeria única no mundo, de Santos, intelectuais, marinheiros e soldados, não pode de forma alguma soçobrar.
Há como que um excedente de valor desses passados heróis, que, atravessando incólume as gerações que morrem, dá à Pátria e aos filhos que lhe querem a energia necessária para vencerem.

Meus Senhores:

Eu proponho aqui, nesta cidade onde perpassaram tantos vultos alevantados da nossa história, nesta cidade onde se anicha em cada canto, em cada rua antiga, a tradição de séculos de glória, onde a natureza canta, e Portugal ri, eu proponho que as duas figuras que se chamam D. Nuno Álvares Pereira e Frei Nuno de Santa Maria, fiquem sendo, de hoje em diante, mais do que nunca, sempre, porque a nossa terra só pode acabar com o mundo, a consubstanciação mais sublime, mais gloriosa e mais Santa, da imorredoira raça portuguesa!


Bernardo Ferrão

Discurso pronunciado no Salão Nobre do Asilo de Santa Estefânia, de Guimarães, no dia 13 de Agosto de 1931, por ocasião da sessão solene presidida por Sua Ex.a Rev.a o Senhor Bispo de Angra, em comemoração do V centenário da morte do Santo Condestável.

In «Gil Vicente», n.º 9/10, vol. VII, págs. 129/136 e n.º 11/12, vol. VIII, págs. 175/182.

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